Vamos agora examinar uma das mais recentes e interessantes concepções sobre a relação entre Tempo e História, bem como sobre as mudanças constantes na sensibilidade coletiva diante do Tempo. O responsável por esta nova concepção historiográfica do Tempo foi o célebre historiador dos conceitos, recentemente falecido, Reinhart Koselleck. O texto a seguir foi adaptado do capítulo sobre Koselleck constante do Quarto Volume de meu livro 'Teoria da História" (Petrópolis: Editora Vozes, 2011).
Começaremos por lembrar que foi em sua célebre obra 'Futuro Passado', publicada em 1979, que Reinhart Koselleck deu forma mais acabada à sua singular perspectiva de que cada Presente não apenas reconstrói o Passado a partir de problematizações geradas na sua atualidade – tal como propunham os Annales e outras correntes historiográficas do século XX – mas também de que cada Presente ressignifica tanto o Passado (referido na conceituação de Koselleck como “campo da experiência”) como o Futuro (referido conceitualmente como “horizonte de expectativas”). Mais ainda, para Koselleck cada Presente concebe também de uma nova maneira a relação entre Futuro e Passado, ou seja, a assimetria entre estas duas instâncias da temporalidade, e não é por acaso que o título de sua mais conhecida coletânea de ensaios é Futuro Passado – contribuição à semântica dos tempos históricos (1979).
Constitui a contribuição mais notável de Koselleck, para a Teoria da História, a apurada percepção desta tensão que sempre se estabelece entre o ‘espaço de experiência’ e o ‘horizonte de expectativas’ – uma tensão que é própria da elaboração do conhecimento historiográfico e mesmo das múltiplas leituras sobre o fenômeno da temporalidade que vão surgindo em cada época, inclusive ao nível das pessoas comuns que vivenciam os padrões disponíveis de sensibilidade diante do tempo que lhes são oferecidos no momento em que vivem. Vamos discutir esta base conceitual, pois apenas a partir dela poderemos recolocar com as devidas proporções as reflexões de Koselleck acerca da “ruptura entre presente e Passado” nos tempos contemporâneos.
A “experiência” e a “expectativa” são apresentadas por Koselleck como duas categorias históricas (duas categorias para uso da Teoria da História, melhor dizendo) que “entrelaçam passado e futuro” (KOSELLECK, 2006, p.308). É oportuno salientar que tem sido considerada uma das mais importantes contribuições historiográficas recentes este esclarecimento koselleckiano, através das categorias da experiência e da expectativa, de que cada uma das temporalidades – o Passado, o Presente e o Futuro – pode imaginariamente se alterar, contrair ou se expandir conforme cada época ou sociedade, modificando-se também a maneira como são pensadas e sentidas as relações entre eles.
Vamos entender, antes de mais nada, o próprio sistema conceitual proposto por Koselleck para lidar com as três temporalidades (Passado, Presente, Futuro). Porque um “espaço de experiência”; e porque um “horizonte de expectativas”? A experiência pertence ao Passado que se concretiza no Presente, de múltiplas maneiras: através da Memória, dos Vestígios, das Permanências e, para os historiadores, das fontes históricas. Talvez não haja definição mais precisa do que aquela que é trazida pelo próprio Koselleck:
“A experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados. Na experiência se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, que não precisam estar mais presentes no conhecimento. Além disso, na experiência de cada um, transmitida por gerações e instituições, sempre está contida e é preservada uma experiência alheia. Neste sentido, também a história é desde sempre concebida como conhecimento de experiências alheias” (KOSELLECK, 2006, p.309-310).
Já as expectativas – que visam o Futuro – correspondem a todo um universo de sensações e antecipações que se referem ao que ainda virá. Nossos medos e esperanças, nossas ansiedades e desejos, nossas apatias e certezas, nossas inquietude e confianças – tudo o que aponta para o futuro, todas as nossas expectativas, fazem parte deste “horizonte de expectativas”. As expectativas, além disto, não apenas são constituídas pelas formas de sensibilidade com relação ao futuro que se aproxima, mas também pela curiosidade a seu respeito e pela análise racional que o visa. A expectativa, enfim, é tudo aquilo que hoje (ou em um determinado Presente) visa o Futuro, crivando-o das sensações as mais diversas. É por isto que Koselleck lembra que, tal como a experiência (esta herança do passado) se realiza no Presente, “também a expectativa se realiza no hoje”, constituindo-se, portanto, em um futuro presente.
Embora a experiência associe-se comumente ao Passado Presente, e a expectativa ao Futuro Presente, é importante atentar para a já mencionada afirmação de Koselleck de que estas duas categorias “entrelaçam o Futuro e o Passado”. Elas não se opõem uma à outra, como em uma dicotomia qualquer; e de fato “experiência” e “expectativa” estão sempre prontas a repercutir uma na outra. São categorias complementares, visto que a experiência abre espaços para um certo horizonte de expectativas. Mais ainda, uma experiência ou o ‘registro de uma experiência’ referido a um passado remoto pode produzir, em outra época, expectativas relacionadas ao futuro. Koselleck, no texto mais elucidativo acerca deste sistema conceitual, fornece um exemplo extraído da própria história conhecida. O exemplo é auto-esclarecedor:
“Podemos citar um exemplo simples: a experiência da execução de Carlos I abriu, mais de um século depois, o horizonte de expectativas de Turgot, quando ele insistiu com Luís XVI que realizasse as reformas que o haveriam de preservar de um destino semelhante. O alerta de Turgot ao rei não encontrou eco. Mas entre a Revolução Inglesa Passada e a Revolução Francesa futura foi possível descobrir e experimentar uma relação temporal que ia além da mera cronologia. A história concreta amadurece em meio a determinadas experiências e determinadas expectativas” (KOSELLECK, 2006, p.308-309).
Outro aspecto particularmente interessante relaciona-se aos dois conceitos que se colocam a “experiência” e “expectativa”. Tentemos compreender porque um “espaço de experiência” e um “horizonte de expectativas”. A partir dos conceitos fundamentais de Koselleck, vamos construir uma possibilidade de explicação e entendimento de como funcionam as imagens do “espaço” e do “horizonte” nestas duas noções criadas por Koselleck para favorecer uma compreensão mais complexas acerca das temporalidades.
O “Passado Presente” pode melhor ser representado como um espaço porque concentra um enorme conjunto de coisas já conhecidas. Pensemos na figura acima como uma possibilidade de representação. Ela é composta de uma linha horizontal, que representará o horizonte de expectativas, e de um semicírculo colado a esta, que representará o campo de experiências. Existe uma infinita região do Passado que não é conhecida, e que, na verdade, jamais será conhecido. Podemos entender este Passado incognoscível, do qual jamais saberemos nada a respeito, como estando fora do semi-círculo. Aquilo que não deixou memória, ou cujas memórias já pereceram; aquilo que não deixou vestígios, nem fontes para os historiadores; aquilo que não está materializado no presente a partir das permanências, das continuidades, da língua, dos rituais ainda praticados, dos hábitos adquiridos, tudo isto faz parte de uma experiência perdida, que se situa fora do semicírculo. O que está dentro do semicírculo, contudo, corresponde ao “espaço de experiência”. Tudo o que ficou do que um dia foi vivido, e se projeta hoje no presente de alguma maneira, está concentrado neste espaço que é fundamental para a vida, e particularmente vital para os historiadores – pois estes só podem acessar o que foi um dia vivido através deste espaço de experiências que se aglomeram sob formas diversas, e dos quais eles extraem as suas fontes históricas. Tal como esclarece Koselleck, a experiência elabora acontecimentos passados e tem o poder de torná-los presentes, e neste sentido está “saturada de realidade” (2006, p.312) .
Pode-se pensar ainda na transferência de elementos do “campo de experiência” para aquele espaço indefinido do passado que já se torna inacessível. Memórias podem se perder, fontes podem se deteriorar e se tornarem ilegíveis, arquivos podem se incendiar, rituais podem deixar de serem praticados e tradições podem passar a não mais serem cultivadas. Quando morre um indivíduo, certamente o mundo perde para este espaço exterior algo do que poderia ser conhecido, do que estava efemeramente situado dentro do semicírculo e que jamais poderá ser recuperado. A História Oral, uma modalidade mais recente das ciências históricas, apresenta, aliás, uma conquista extremamente importante para a historiografia, e mesmo para a humanidade. Através desta abordagem histórica, é possível fixar o que um dia irá perder, pois as memórias podem ser registradas em depoimentos, gravados ou anotados, e as visões e percepções de mundo de indivíduos que um dia irão perecer também podem encontrar o seu registro. É possível imaginar que algo que também parecia estar no espaço exterior também venha um dia para dentro do semicírculo, nos momentos em que os historiadores descobrem novas fontes, ou mesmo novas técnicas para extrair de fontes já conhecidas elementos que antes não pareciam fazer parte do “espaço de experiência”.
Qualquer Passado, qualquer coisa que hoje está no interior deste semicírculo que é o “espaço de experiência” ou o “Passado Presente”, assim como ainda aquilo o que se perdeu para fora dele mas que um dia também foi vivido, já correspondeu outrora a um Presente. Nosso presente, cada instante que vivenciamos, logo se tornará um passado, e mesmo ocorrendo com o futuro que ainda não conhecemos. Por isto mesmo, a cada segundo, a cada novo presente, o espaço de experiência se transforma. O que podemos acessar de um vivido e de uma experiência que nos chega do passado revolve-se constantemente, reapresentando-se a cada vez de uma nova maneira . As próprias experiências já adquiridas podem se modificar com o tempo, e Koselleck dá o exemplo dos acontecimentos relacionados à ascensão do Nazismo, em 1933, entre os quais o incêndio criminoso do Parlamento Alemão. “Os eventos de 1933 aconteceram de uma vez por todas, mas as experiências baseadas neles podem mudar com o correr do tempo; as experiências se superpõem, impregnam-se umas das outras” (KOSELLECK, 2006, p.312-313) .
Quanto ao “Futuro Presente” (este Futuro que ainda não ocorreu, mas cuja proximidade ou distância repercute no Presente sob a forma das mais diversas expectativas), este é representável por uma linha. Na verdade, é representado por uma linha porque é efetivamente o que está para além desta linha, correspondendo àquilo que ainda não é conhecido. Temos apenas uma “expectativa” sobre o futuro, mas efetivamente não podemos dizer como ele será. Por isso a metáfora do horizonte – o extremo limite que se oferece à visão, e para além do qual sabemos que há algo, mas não sabemos exatamente o que é. Sempre que nos aproximamos do horizonte, ele recua, de modo que nunca deixará de persistir como uma linha além da qual paira o desconhecido, que logo se tornará conhecido porque se converterá em presente. Conforme as próprias palavras de Koselleck, “horizonte quer dizer aquela linha por trás da qual se abre no futuro um novo espaço de experiência, mas um espaço que ainda não pode ser contemplado; a possibilidade de se descobrir o futuro, embora os prognósticos sejam possíveis, se depara com um limite absoluto, pois ela não pode ser experimentada” (KOSELLECK, 2006, p.311).
Entre estas duas imagens se comprime o Presente: um fugidio momento de difícil de representação visual que parece se comprimir entre o espaço concentrado que representa o Passado (e logo se incorporar a ele) e a linha fugidia que representa o Futuro – esta linha eternamente móvel (pois rapidamente o que ele traz, tão logo se torne conhecido, transforma-se por um segundo em Presente e logo depois passa a ser englobado pelo interior do semicírculo que corresponde ao “espaço de experiência” (quando não se perde no Passado incognoscível situado fora do semicírculo).
É importante ressaltar ainda que o “Passado Presente” e o “Futuro Presente”, ou o “campo de experiências” e o “horizonte de expectativas”, não constituem conceitos simétricos – ou “imagens especulares recíprocas” tal como alerta Koselleck (2006, p.310). Imaginariamente, o campo de experiência, o Presente, e o horizonte de expectativas podem produzir as relações mais diversas, e assim ocorre no decorrer da própria história. Há épocas em que o tempo parece aos seus contemporâneos se desenrolar lentamente, e outras em que parece estar acelerado, em função da rapidez das transformações políticas ou tecnológicas . Existem períodos da história, crivados de movimentos revolucionários, nos quais os agentes que deles participam desenvolvem a sensação de que o futuro é aqui agora, tendo se fundido ao presente. Em outros, inclusive, o futuro parece permanecer “atrelado ao passado”, tal como naqueles em que as expectativas do futuro não se referem a este mundo, mas sim a um outro que será escatologicamente trazido pela redenção dos tempos . As fusões e clivagens que se estabelecem imaginariamente entre as três temporalidades – Passado, Presente e Futuro – podem aparecer ao ambiente mental predominante em cada época, e às consciências daqueles que vivem nestas várias épocas, de maneiras bem diferenciadas.
Para Koselleck, o tempo histórico é ditado, de forma sempre diferente, pela tensão entre expectativas e experiência (2006, p.313). Há por exemplo ações e práticas humanas que são constituídas precisamente desta tensão, tal como ocorre com a elaboração de “prognósticos”, que sempre exprimem uma expectativa a partir de um certo campo de experiências (portanto, a partir de um “diagnóstico”). Diz-nos também o historiador alemão que “o que estende o horizonte de expectativa é o espaço de experiência aberto para o futuro”, o que se pode dar de múltiplas maneiras, conforme a relação estabelecida entre as duas instâncias (2006, p.313). Como se disse, em cada época pode haver uma tendência distinta a reavaliar a tensão entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativas (ou entre o Passado e o Futuro, através da mediação do Presente). Apenas para ilustrar com uma das hipóteses de Koselleck, na modernidade “as expectativas passam a distanciar-se cada vez mais das experiências feitas até então” (2006, p.314); em contrapartida, em todo o ambiente mental predominante no ocidente até meados do século XVII, o futuro parecia permanecer fortemente atrelado ao próprio passado (2006, p.315) . Poderíamos mesmo pensar em duas representações para os dois momentos da história das sensibilidades europeias em relação ao Tempo, já que, no período propriamente moderno, “o espaço de experiência deixa de estar limitado pelo horizonte de expectativa; os limites de um e de outro se separam”
O aparato conceitual desenvolvido por Koselleck foi incorporado pela historiografia como aquilo que de mais eficaz se produziu até hoje para operacionalizar uma visão historiográfica do tempo. Recomenda-se a leitura dos livros de Koselleck, particularmente 'Futuro Passado', já traduzido para o português.
Um texto mais completo sobre Koselleck pode ser encontrado em:
BARROS, José D'Assunção. Teoria da História - volume 5: Acordes Historiográficos. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.
Mais sobre o tema: https://www.researchgate.net/publication/320977191_Koselleck_a_historia_dos_conceitos_e_as_temporalidades
_________________________
Referências:
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado – contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006 [original: 1979]
José D'Assunção Barros
E-mail: jose.d.assun@globomail.com
terça-feira, 31 de março de 2020
O Tempo (6). Concepções de Tempo na historiografia do século XX: A Contribuição dos Annales
Um dos grandes movimentos
historiográficos do século XX, como se sabe, foi a constituído
pela chamada Escola dos Annales, a qual teve grande repercussão no
Brasil deixando um legado que até os dias de hoje influencia os
nossos historiadores. As contribuições dos Annales foram muitas –
indo desde o combate em favor da história-problema contra a história
factual, até uma especial atenção às interdisciplinaridades.
Neste artigo, desenvolveremos um conjunto de considerações sobre
uma das contribuições que mais chamam atenção em historiadores
dos Annales como Marc Bloch, Lucien Febvre, Fernand Braudel e outros:
as novas formas de se relacionar com o tempo por eles propostas.
Quando falamos em novas
possibilidades de relações entre os historiadores e o tempo, temos
em vista aspectos que vão da percepção do tempo histórico às
possibilidades de representá-lo, de utilizá-lo como aliado para
produzir inovadoras leituras da história, pensar inusitados objetos
e mobilizar novos tipos de fontes históricas. Essas novas
possibilidades, evidentemente, não foram exclusivas dos
historiadores dos Annales, constituindo desdobramentos para o qual
contribuíram historiadores diversos ao longo de todo o século XX.
Não obstante, com os Annales o trabalho mais sofisticado sobre o
tempo histórico tornou-se um item central no programa desta escola.
Particularmente com Braudel e
os annalistas que o seguiram em sua própria geração e na seguinte,
iremos encontrar um novo modo de conceber e representar o tempo a
partir da articulação entre dois conceitos importantes: o de ‘longa
duração’ e o da ‘multiplicidade de tempos históricos’. Ao
assimilar uma noção de ‘estrutura’ que já vinha encontrando
seu desenvolvimento na Lingüística e na Antropologia da primeira
metade do século XX, os annalistas inovam concebendo-a como
movimento. De igual maneira, conceitos apenas aparentemente
antagônicos como evento e estrutura encontram uma nova forma de
articulação com a perspectiva da longa duração.
O olhar longo proporcionado
pela longa duração é ainda revelador de aspectos que “só podem
ser percebidas quando o recorte é bastante amplo, isto é, talhado
ao fio dos séculos” (VOVELLE, 2011, p.376). De igual maneira,
pensar a “longa duração” implica, como possibilidade, uma nova
postura do historiador frente às fontes históricas. “Longa
duração” e “série documental”, embora não constituam
instâncias necessariamente interdependentes, apresentam-se como
proposições complementares em muitos dos trabalhos dos novos
historiadores que abraçaram a perspectiva da História Serial. No
entender do Foucault de Arqueologia do Saber, a possibilidade
de se estabelecer séries massivas de documentos, nas quais cada
fonte deixa de ser isolada para passar a ser percebida em um conjunto
mais amplo que se estende cronologicamente, foi mesmo o que habilitou
historiador a atuar em um registro mais extenso, percebendo
permanências e variações graduais. A “Longa Duração” deriva
da “Série”, diz-nos o filósofo francês. Nada impede, por outro
lado, que a série seja também empregada no estudo de processos de
ritmo mais acelerado.
O conceito de longa duração
O grande desafio a ser
enfrentado pelos historiadores dos Annales a partir de Fernand
Braudel estava na necessidade de superar o paradoxo de conciliar o
tempo da história – sem o qual esta não pode ser pensada como
campo de saber – com a ‘estrutura’ atemporal que vinha sendo
proposta por setores específicos da Antropologia, da Linguística e
de outras ciências humanas. Em uma palavra, tratava-se de enquadrar
a mudança histórica na estrutura da “longa duração”. Uma
possibilidade de abordar a questão é a de considerar que, se no
âmbito mais amplo da longa duração o tempo se apresenta
estrutural, já no seu interior podem ocorrer mudanças a serem
compreendidas pelo historiador. Fernando Braudel, em seu célebre
artigo “A Longa Duração” (1958), evoca o exemplo da Economia:
A dificuldade, por um paradoxo
apenas aparente, é vislumbrar a longa duração no campo em que a
pesquisa histórica acaba de obter inegáveis sucessos: o campo
econômico. Ciclos, inter ciclos, crises estruturais ocultam aqui as
regularidades, as permanências de sistemas, ou de civilizações,
como disseram alguns – isto é, velhos hábitos no que diz respeito
ao modo de pensar e agir, condicionamentos resistentes, duros de
mover, às vezes até mesmo contra toda alógica (BRAUDEL, 2011,
p.96-97).
Conforme se vê, a perspectiva
da longa duração deve vir acompanhada da percepção de que os
ritmos dos diversos processos históricos não precisam
necessariamente coincidir. O mundo agitado da política do dia-a-dia
– ou, para dar um exemplo mais recente que Braudel não poderia
ainda evocar em sua época, das inovações tecnológicas que se
assomam desde as últimas décadas do século XX – pode contrastar
com o ritmo lento das mentalidades, das relações mais amplas entre
os homens e o espaço geográfico, das mudanças estruturais na
língua através das quais os indivíduos se comunicam. Para as
mudanças políticas, tornou-se célebre a metáfora braudeliana das
“espumas” formadas nas cristas das grandes ondas históricas. A
esta convivência entre distintos ritmos do tempo histórico – ou
mais especificamente das diferentes durações – Fernando Braudel
se referiu nos termos de uma “dialética das durações”. Um
esquema visual pode nos facilitar a compreender a dialética das
durações como uma espécie de arquitetura na qual a estrutura de
ritmo mais longo (a longa duração) enquadra os ritmos de duração
mais rápida.
Pensar a dialética das
durações como arquitetura é apenas uma possibilidade. Obviamente
que os diversos processos históricos não se ajustam uns aos outros
como se fossem peças bem encaixadas em um esquema arquitetônico. De
todo modo, a metáfora da arquitetura permite entender, ainda que de
maneira simplória, a possibilidade de convivência e articulação
dos diferentes ritmos históricos. Ao se mostrarem regidas por um
tempo lento que determina seu alargado arco externo de permanências
– e ao admitir dentro de si mesmas o contraponto de ritmos mais
entrecortados – as estruturas reafirmam aqui a sua própria
instância histórica, abaixo e acima de si, notando-se que uma
estrutura poderia ser contraposta a outra em termos de alteridade (e
não de continuidade). No interior de uma estrutura de longa duração,
representada visualmente na parte superior do esquema, poderiam ser
abordadas pelo historiador as média e curta duração (ou os tempos
das conjunturas e dos eventos), de modo que o projeto braudeliano de
durações enquadradas conseguiria estabelecer uma conciliação
entre o tempo agitado da história política tradicional e o tempo
imóvel das ciências sociais emergentes. A metáfora da arquitetura
de durações é autorizada pelo próprio Fernand Braudel em sua
busca de uma delimitação e elucidação do conceito de “estrutura”,
tal como este poderia ser utilizado pelos historiadores:
Para
nós, historiadores, uma estrutura é sem dúvida um agregado, uma
arquitetura; porém, mais ainda, uma realidade que o tempo pouco
deteriora e que veicula por um longo período. Certas estruturas, por
perdurarem durante muito tempo, tornam-se elementos estáveis de uma
infinidade de gerações: elas obstruem a história e, pelo fato de a
incomodarem, impõem seu desabamento. Outras são mais propícias a
se desestruturar. Mas todas são, ao mesmo tempo, sustentáculos e
obstáculos. Com obstáculos, elas ficam marcadas como limites
(contornos,
no sentido matemático) dos quais o homem e suas experiências
praticamente não podem se libertar. Pensem na dificuldade de quebrar
algumas limitações geográficas, algumas realidades biológicas,
alguns limites da produtividade e mesmo certos condicionamentos
espirituais: os arcabouços mentais também são prisões de longa
duração (Fernando Braudel, A
História e as Ciências Sociais: a Longa Duração,
1958) [BRAUDEL, 2011, p.95].
Neste texto, Fernand Braudel
menciona tanto a possibilidade de estruturas que apresentam fissuras
entre si (as estruturas contras as quais “impõe-se o seu
desabamento” para que outras possam surgir), como também a
ocorrência de estruturas que deslizam lentamente até desaparecerem,
ou até se transformarem em novas estruturas, com características
distintas e novos padrões de coerência. De acordo com as próprias
palavras de Braudel, temos aqui as estruturas que “são mais
propícias a se desestruturar”. Em um caso, a passagem de uma
estrutura a outra pode ser regida por mudanças ou declives abruptos,
e certamente aqui podem ser incluídas as revoluções sociais,
compreendidas como movimentos contra as estruturas que “obstruem a
história”. Podemos agregar ainda o exemplo das revoluções
tecnológicas, que em alguns casos constituem poderosos eventos
capazes de desestruturar de assalto uma antiga estrutura. Basta
pensar nos eventos tecnológicos que, nas últimas décadas, mudaram
a face do mundo da comunicação humana através de uma irreversível
revolução digital. Acontecimentos políticos de grande porte –
como a desestruturação do socialismo real na antiga União
Soviética e o desabamento do muro de Berlim entre as duas Alemanhas
– podem também ser evocados como exemplos de eventos que
proporcionaram a passagem de uma estrutura para outra. Neste caso,
seria interessante discutir se acontecimentos como estes é que
introduziram uma fissura na estrutura política anterior ou se, na
verdade, foram resultados de longos e imperceptíveis processos
sociais e políticos que já vinham acumulando tensões no interior
da própria estrutura, até que estas se rupturas tornaram visíveis
e irreparáveis através de um acontecimento emblemático e
impactante.
Leia a continuação deste
texto em:
José D'Assunção Barros
E-mail: jose.d.assun@globomail.com
O Tempo (5) As Concepções Lineares do Tempo no século XIX
Além da versão hegeliana do Tempo Iluminista, discutida no post anterior, o século XIX traria outra versão conservadora do otimismo iluminista e da sua confiança no Progresso. O Projeto Positivista – inaugurado na história das idéias por Augusto Comte – busca combinar Ordem e Progresso, e corresponde contextualmente ao período da Restauração e dos ajustes históricos entre os privilégios aristocráticos que ainda podiam ser preservados e os interesses de uma burguesia industrial que saíra fortalecida da Revolução Francesa.
O modelo que iremos discutir neste momento corresponde ao Positivismo Comtiano. Augusto Comte, fundador da sociologia positivista ainda na primeira metade do século XIX, concebia o destino humano em termos de uma passagem por três estágios sucessivos: o Estado Teológico, o Estado Metafísico, e o Estado Positivo. Todas as sociedades humanas, seguindo o modelo das sociedades europeias que eram as mais avançadas segundo a perspectiva positivista, deveriam realizar esta passagem pelos “Três Estados”. Chegando ao Estado Positivo, já não haveria mais mudanças de qualidade, mas apenas progresso quantitativo, isto é, avanços científicos de modo geral. Deste modo, o Tempo Positivista continua sendo linear e teleológico: aponta para um futuro no qual estaria realizado plenamente o estado Positivo. Do ponto de vista de um historiador positivista do século XIX, o Passado (correspondente aos estados teológico e metafísico que haviam sido superados na civilização européia com o advento do Iluminismo) continua destacado do Presente, que praticamente se funde ao Futuro, já que se considera que, na Europa, o Estado Positivo já começou a ser estabelecido.
O Tempo Positivista, tal como o Tempo Iluminista, segue sendo Progressivo, mas não é mais Acelerado como no tempo revolucionário dos iluministas. Isto porque o Positivismo não apresenta um projeto revolucionário, mas sim um projeto evolucionista. Seu objetivo é a ‘conciliação de classes’ sob a égide de uma burguesia industrial já assentada no poder, e não a ‘luta de classes’ (como ocorrera na época da Revolução Francesa sob a liderança de uma burguesia então revolucionária). Os tempos, agora, são outros. Por isso o Tempo Positivista segue sendo Teleológico, mas é já anti-revolucionário (um vetor apontando para um futuro de Racionalidade Plena, que, pretensamente, já começa a se ver realizado à medida que as diversas ciências, uma a uma, vão passando dos estados inferiores (teológico e metafísico) para o Estágio Positivo. No limite final, temos a realização plena do positivismo, quando as Ciências Sociais se tornarem elas mesmas inteiramente positivas como a Física e as Ciências da Natureza. No que se referem à elaboração da história-conhecimento, os Eventos do Passado devem ser imobilizados pelo Historiador, para não se tornarem nocivos e explosivos no Presente-Futuro do Estado Positivo em formação. Desta maneira, a função dos historiadores no Positivismo seria explicar os eventos, estabelecer sobre eles um controle através do seu enquadramento em Leis Gerais das sociedades humanas a serem descobertas pelos historiadores e sociólogos positivistas.
Vamos tentar apreender os elementos essenciais da concepção de tempo trazida ao debate historiográfico do século XIX pelos historicistas. O Tempo Historicista não é difícil de representar visualmente. Abrindo mão de uma concepção universalista da História, os historicistas estarão preocupados com a elaboração de suas histórias nacionais, e procuram não pensar muito em um futuro teleológico. No que concerne à preocupação com as histórias nacionais e com as singularidades locais, por oposição à obsessão pela unidade histórica universal dos iluministas, os historicistas já tinham tido um precursor no século anterior, um filósofo da história que habitualmente é classificado como um romântico do século XVIII chama-se Johann G. Herder (1744-1803). Herder escrevera nesta direção duas obras importantes: em 1774, um livro intitulado 'Ainda uma Filosofia da História para a Educação da Humanidade', e posteriormente outra obra intitulada 'Idéias para uma Filosofia da História da Humanidade' (1794). Os protagonistas do grande movimento histórico seriam para ele os “Espíritos dos Povos”, através dos quais Deus se manifesta – e nem uma Providência transcendental como queriam os historiadores teólogos, ou um Espírito da Razão como queriam os iluminista universalistas. Surge aqui o que mais tarde, no século seguinte, se tornaria um paradigma alternativo através dos historicistas oitocentistas: a consideração e o respeito pelas diferenças nacionais. A História é um entrelaçado de várias histórias que caminham juntas, uma vez que cada povo é livre para exprimir a sua singularidade e a sua própria natureza. Assistimos com Herder à celebração das diferenças, e se a história continua a avançar progressivamente para o futuro, talvez a sua representação visual mais adequada seja a de uma série de paralelas que se dirigem para o futuro.
O respeito às singularidades nacionais será uma das bases do pensamento historicista e de sua concepção de tempo histórico. Para muitos dos historicistas do século XIX, o melhor dos mundos possíveis era a Monarquia ou nação que acolhia o seu trabalho, e estes estado-nacionais em afirmação estavam dispostos a financiar suas carreiras e a situá-los na posição confortável e necessária de restauradores da memória nacional, de organizadores dos acervos documentais do país, de edificadores da disciplina historiográfica que recentemente fora incluída no panteão de conhecimentos universitários. Aos diversos historiadores, estados como o da Monarquia Prussiana só pediam que escrevessem uma historiografia que não motivasse as revoluções, como a que ocorrera em 1830. A Revolução Francesa também já há algum tempo fora uma página virada da História, e já ocorrera a Restauração. Estes governos desejavam apenas se organizar, conservar privilégios aristocráticos mas sem deixar de atender aos interesses de uma burguesia que não era mais revolucionário (como na época do pensamento Ilustrado) e sim conservadora. Para os historicistas da Escola Alemã o tempo é uma linha reta, bastante simples.
Muitos historicistas não tinham qualquer preocupação em especular sobre um futuro a ser atingido, precisamente porque haviam sido contratados por este ou por aquele estado-nação para escrever uma História que, ao sedimentar a memória da nação, desautorizasse revoluções radicais. O projeto de muitos destes historicistas era certamente conservador, particularmente o dos historicistas das sete primeiras décadas do século XIX. A nação-estado que acolhia o historiador devia ser vista como uma espécie de “melhor dos mundos possíveis”. As melhorias deveriam vir através das ações habituais da Política tradicional. Embora o futuro existisse para muitos dos historicistas da Escola Alemã, ele não se apresentava como qualitativamente distinto do Presente ou do Passado, ou ao menos não representava um mundo melhor a ser atingido, pois isto indicaria que o Presente deveria ser superado. Deste modo, no que concerne à Temporalidade Historicista, pode-se dizer que o Presente tende a incorporar o Passado, embora seja dele distinto, formando um contínuo que constitui a contemporaneidade, sendo que o Passado legitima o Presente no caso dos historicistas vinculados, no século XIX, à estrutura estatal e aos projetos dos Estados Nacionais.
Com referência ao tempo historiográfico, o historicista costuma pensar em termos de uma Reconstituição do tempo da História Efetiva, o que se dá assumidamente a partir do ponto de vista do Historiador (sobretudo para o caso dos historicistas relativistas, que já começam a aparecer com maior freqüência a partir de meados do século XIX), e através da idéia de uma oposição da perspectiva da Compreensão à perspectiva da Explicação, que seria a das ciências naturais e exatas.
A tendência mais recorrente a legitimar historiograficamente o Presente, através de uma glorificação do estado-nacional e de sua memória, não impede de todo modo que sejam perceptíveis variações entre os vários historicistas. É interessante o caso de Leopold von Ranke, considerado por muitos como o “pai do historicismo alemão”. Ranke fora contratado pela Monarquia Prussiana para glorificar historiograficamente este estado e sua memória, e para narrar esta história de uma maneira em que não se vissem motivadas as atitudes revolucionárias, mas sim a ideia de que as melhorias na vida humana e nacional deveriam ser atingidas através de reformas. Tornou-se amigo de Frederico Guilherme da Prússia e de Maximiliano da Baviera, e alcançou uma excelente posição social através de seu trabalho como historiador. Por outro lado, é muito interessante a maneira como percebe as épocas do Passado. Apesar de glorificar a nação que acolhia seu trabalho, e de atender às necessidades do governante, ele via cada época como “perfeita em si mesma”, de modo que nenhuma delas, nem mesmo o seu Presente, possuía um grau de importância maior do que as outras épocas. A passagem de uma época para outra não representava uma superação da época anterior, como haviam proposto tantos dos historiadores do século XIX e, na sua própria época, Hegel:
“Eu afirmo que cada época provém imediatamente de Deus, e o seu valor não reside fora dela, mas na sua existência mesma, na sua peculiaridade. [...] Cada época deve ser vista como algo válido e mostra-se altamente digna de consideração” (RANKE, apud BODEI, 2001, p.56).
Fora da Alemanha, onde o predomínio da concepção historicista é evidente, teremos inúmeros outros exemplos de historiadores que, através da perspectiva historicista, buscam “reconstituir” uma história que situa a sua própria época como o melhor dos mundos que poderia ser atingido, resultando que a partir daí as transformações deveriam se dar através de reformas no quadro da política tradicional. Assim, na Inglaterra de meados do século XIX teremos a obra sobre a História da Inglaterra (1849) de Thomas Babbington Macaulay (1800-1859), que pretende reconstituir o passado histórico com vistas a mostrar uma progressiva ascensão “em direção às formas da liberdade constitucional inglesa” (FONTANA, 2004, p.233). Isto implica, para o caso do historiador whig Macaulay, em compreender a História em termos de graduais vitórias dos reformistas whigs contra os tories, que aparecem como defensores do status quo e como freios à progressiva evolução política liderada pelos whigs . Portanto, o tempo histórico apresenta-se aqui linear e progressivo. Mas não há mais muito o que esperar do futuro, senão melhorias que virão das reformas políticas e do desenvolvimento tecnológico. Macaulay, por exemplo, tal como seu antagonista escocês Thomas Carlyle (1795-1881), sustentava enfaticamente que o sufrágio universal seria “incompatível com a existência da civilização” (FONTANA, 2004, p.232).
O Historicismo Relativista, nas suas várias versões, irá aprofundar de uma nova maneira a concepção do tempo histórico. Para o historicismo presentista de fins do século XIX ou do século XX, através de nomes como os de Benedetto Croce (1866-1952) ou Collingwood (1889-1943) – mas também para outras correntes de pensamento como a do “pragmatismo” de John Dewey (1859-1952) – cada Presente possui o seu Passado, reescrevendo a sua história. Já não há aqui nenhuma pretensão de “narrar os fatos tal como eles se deram”, mas sim o objetivo de narrar os fatos de acordo com o ponto de vista e o interesse e motivações de uma época, de uma escola historiográfica nacional, ou mesmo de um historiador. O Passado tornar-se-á construção do Presente. Esta leitura também será mais tarde incorporada pela Escola dos Annales, sendo que se frisará naquele movimento que o Passado é construção problematizada do Presente. Será esta, também, a posição da escola presentista americana, através de historiadores como Charles Beard (1874-1948) e Carl Becker (1873-1945).
Retornemos, por ora, aos debates da historiografia no século XIX. Enquanto os estados-nacionais europeus convocavam historiadores historicistas para a reconstituição da História e da Memória nacionais, a própria Alemanha do século XIX traria, das fileiras oriundas da chamada ‘esquerda hegeliana’ (um setor mais crítico do pensamento derivado de Hegel) um nome que estaria destinado a mudar a historiografia ocidental, senão no seu próprio século, ao menos no século seguinte. Karl Marx, conjuntamente com Friedrich Engels, seria um dos fundadores do Materialismo Histórico – uma concepção da história que retoma a dialética hegeliana e a combina a novas idéias, como a de “luta de classes”. Para os fundadores do Materialismo Histórico existem duas histórias entrelaçadas: a “história da luta de classes’ e a ‘história dos modos de produção’. Uma está dentro da outra. Os modos de produção sucedem-se na história como grandes épocas ou sistemas econômico-sociais, aos quais corresponde um determinado universo cultural e ideológico perfeitamente ajustado à base econômico-social. As classes sociais em luta estão sempre relacionadas a posições específicas dentro do modo de produção que as fez surgir, e do seu confronto de interesses surgem as contradições que movimentam a dialética do materialismo histórico – não mais uma dialética idealista, como a de Hegel, mas uma dialética materialista, na qual as grandes transformações sempre começam na base econômico social, a partir do desenvolvimento das forças produtivas. Seria necessário buscar, para o Materialismo Histórico, uma representação que desse conta deste duplo tempo que entrelaça a “história da luta de classes” com a “história dos modos de produção”.
A linha reta que representa a “luta de classes” é alimentada por contínuos círculos dialéticos internos (ver no artigo em referência os esquemas visuais), mas no âmbito mais amplo não deixa de ser uma linha reta que aponta teleologicamente para o futuro: uma sociedade sem classes que corresponderá ao Modo de Produção Socialista. Os blocos que se sucedem na “história dos modos de produção” correspondem a estruturas ou sistemas bem diferenciados entre si, cada qual com seu próprio padrão de racionalidade e organização social. Os modos de produção separam-se uns dos outros por rupturas, que podem corresponder a revoluções sociais (ou então a outros tipos de “revoluções”, como a revolução agrícola, que permitiu o rompimento em relação à economia de coleta ainda no período pré-histórico, ou então a revolução urbana, que inicia o período histórico propriamente dito com as grandes civilizações urbanas. O ‘Quadro 8’ [ver no artigo completo] sintetiza os aspectos fundamentais do tempo do Materialismo Histórico.
Deve-se notar ainda, na concepção temporal proporcionada pelo Materialismo Histórico, que pode ser entrevista ainda uma ‘dialética de tempos diferenciados’ por dentro deste tempo meta-narrativo que conta a história da ‘luta de classes’ e da sucessão de ‘modos de produção’ . Se o movimento dialético da História dá-se através do confronto entre as ‘forças produtivas’ e as ‘relações de produção’ – duas faces de um determinado ‘modo de produção’ que começam a certa altura se contraditar embora na origem tenham sido feitas umas para as outras – isto ocorre, pode-se aventar, em termos de uma contradição entre duas velocidades diferenciadas de tempo. As forças de produção constituem a parte mais dinâmica de um modo de produção, ao mesmo na corrente mais clássica do Materialismo Histórico. Jamais cessam de se transformar as forças de produção, de se desenvolver, de se impulsionarem para a frente. Desenvolvimentos tecnológicos as impulsionam para o futuro, os modos de trabalho se desenvolvem, os trabalhadores se aprimoram como sujeitos de produção, inclusive adquirindo maior consciência de classe. As ‘relações de produção’, contudo, que tendem a criar hierarquias sociais bem-estabelecidas e redes de deveres, limitações e privilégios para os vários níveis sociais envolvidos no processo produtivo, dando origem a um certo sistema de propriedade e de apropriação de recursos. Haverá uma mudança muito mais lenta nas ‘relações de produção’, uma velocidade menor do seu tempo histórico (alguns irão argumentar mesmo que as ‘relações de produção’ são estáticas, isto é, imóveis, transformando-se por isto em um ponto de inércia que deverá necessariamente vencido pelas forças produtivas para que seja possível a progressão dialética com vistas ao estabelecimento de um novo modo de produção.
Uma leitura ou outra, pode-se dizer que existe também por dentro do próprio modo de produção um confronto entre dois tempos históricos diferenciados, o das ‘forças de produção’, que produz mudanças em uma velocidade maior, e o das ‘relações de produção’, que só lentamente se transforma, ou se mostra mesmo imóvel. De todo modo, ao final do processo que se estabelece a partir desta dialética de durações, o sistema tende a ser impulsionado para a frente. O Materialismo Histórico, ao menos na habitual versão que se associa ao ideal de atingir um dia o ‘modo de produção socialista’, ou uma ‘sociedade sem classes’, continua a constituir como aparência mais externa uma linha reta que aponta para o futuro.
O texto aqui adaptado pode ser encontrado em:
http://www.revista.ufal.br/criticahistorica/index.php?option=com_content&view=article&id=72:os-tempos-da-historia&catid=41:artigos&Itemid=56
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BARROS, José D'Assunção "Os Tempos da História: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX". Revista Crítica Histórica. Ano 1, n°2. Alagoas: UFAL, 2010. p.180-208.
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Referências Bibliográficas:
BARROS, José D'Assunção "Os Tempos da História: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX". Revista Crítica Histórica. Ano 1, n°2. Alagoas: UFAL, 2010. p.180-208. http://ning.it/hoEWu4
BODEI, Remo. A História tem um sentido? Bauru: EDUSC, 2001 [original: 1997]
FONTANA, Josep. A História dos Homens. Bauru: EDUSC, 2004 [original: 2000].
José D'Assunção Barros
E-mail: jose.d.assun@globomail.com
O modelo que iremos discutir neste momento corresponde ao Positivismo Comtiano. Augusto Comte, fundador da sociologia positivista ainda na primeira metade do século XIX, concebia o destino humano em termos de uma passagem por três estágios sucessivos: o Estado Teológico, o Estado Metafísico, e o Estado Positivo. Todas as sociedades humanas, seguindo o modelo das sociedades europeias que eram as mais avançadas segundo a perspectiva positivista, deveriam realizar esta passagem pelos “Três Estados”. Chegando ao Estado Positivo, já não haveria mais mudanças de qualidade, mas apenas progresso quantitativo, isto é, avanços científicos de modo geral. Deste modo, o Tempo Positivista continua sendo linear e teleológico: aponta para um futuro no qual estaria realizado plenamente o estado Positivo. Do ponto de vista de um historiador positivista do século XIX, o Passado (correspondente aos estados teológico e metafísico que haviam sido superados na civilização européia com o advento do Iluminismo) continua destacado do Presente, que praticamente se funde ao Futuro, já que se considera que, na Europa, o Estado Positivo já começou a ser estabelecido.
O Tempo Positivista, tal como o Tempo Iluminista, segue sendo Progressivo, mas não é mais Acelerado como no tempo revolucionário dos iluministas. Isto porque o Positivismo não apresenta um projeto revolucionário, mas sim um projeto evolucionista. Seu objetivo é a ‘conciliação de classes’ sob a égide de uma burguesia industrial já assentada no poder, e não a ‘luta de classes’ (como ocorrera na época da Revolução Francesa sob a liderança de uma burguesia então revolucionária). Os tempos, agora, são outros. Por isso o Tempo Positivista segue sendo Teleológico, mas é já anti-revolucionário (um vetor apontando para um futuro de Racionalidade Plena, que, pretensamente, já começa a se ver realizado à medida que as diversas ciências, uma a uma, vão passando dos estados inferiores (teológico e metafísico) para o Estágio Positivo. No limite final, temos a realização plena do positivismo, quando as Ciências Sociais se tornarem elas mesmas inteiramente positivas como a Física e as Ciências da Natureza. No que se referem à elaboração da história-conhecimento, os Eventos do Passado devem ser imobilizados pelo Historiador, para não se tornarem nocivos e explosivos no Presente-Futuro do Estado Positivo em formação. Desta maneira, a função dos historiadores no Positivismo seria explicar os eventos, estabelecer sobre eles um controle através do seu enquadramento em Leis Gerais das sociedades humanas a serem descobertas pelos historiadores e sociólogos positivistas.
Vamos tentar apreender os elementos essenciais da concepção de tempo trazida ao debate historiográfico do século XIX pelos historicistas. O Tempo Historicista não é difícil de representar visualmente. Abrindo mão de uma concepção universalista da História, os historicistas estarão preocupados com a elaboração de suas histórias nacionais, e procuram não pensar muito em um futuro teleológico. No que concerne à preocupação com as histórias nacionais e com as singularidades locais, por oposição à obsessão pela unidade histórica universal dos iluministas, os historicistas já tinham tido um precursor no século anterior, um filósofo da história que habitualmente é classificado como um romântico do século XVIII chama-se Johann G. Herder (1744-1803). Herder escrevera nesta direção duas obras importantes: em 1774, um livro intitulado 'Ainda uma Filosofia da História para a Educação da Humanidade', e posteriormente outra obra intitulada 'Idéias para uma Filosofia da História da Humanidade' (1794). Os protagonistas do grande movimento histórico seriam para ele os “Espíritos dos Povos”, através dos quais Deus se manifesta – e nem uma Providência transcendental como queriam os historiadores teólogos, ou um Espírito da Razão como queriam os iluminista universalistas. Surge aqui o que mais tarde, no século seguinte, se tornaria um paradigma alternativo através dos historicistas oitocentistas: a consideração e o respeito pelas diferenças nacionais. A História é um entrelaçado de várias histórias que caminham juntas, uma vez que cada povo é livre para exprimir a sua singularidade e a sua própria natureza. Assistimos com Herder à celebração das diferenças, e se a história continua a avançar progressivamente para o futuro, talvez a sua representação visual mais adequada seja a de uma série de paralelas que se dirigem para o futuro.
O respeito às singularidades nacionais será uma das bases do pensamento historicista e de sua concepção de tempo histórico. Para muitos dos historicistas do século XIX, o melhor dos mundos possíveis era a Monarquia ou nação que acolhia o seu trabalho, e estes estado-nacionais em afirmação estavam dispostos a financiar suas carreiras e a situá-los na posição confortável e necessária de restauradores da memória nacional, de organizadores dos acervos documentais do país, de edificadores da disciplina historiográfica que recentemente fora incluída no panteão de conhecimentos universitários. Aos diversos historiadores, estados como o da Monarquia Prussiana só pediam que escrevessem uma historiografia que não motivasse as revoluções, como a que ocorrera em 1830. A Revolução Francesa também já há algum tempo fora uma página virada da História, e já ocorrera a Restauração. Estes governos desejavam apenas se organizar, conservar privilégios aristocráticos mas sem deixar de atender aos interesses de uma burguesia que não era mais revolucionário (como na época do pensamento Ilustrado) e sim conservadora. Para os historicistas da Escola Alemã o tempo é uma linha reta, bastante simples.
Muitos historicistas não tinham qualquer preocupação em especular sobre um futuro a ser atingido, precisamente porque haviam sido contratados por este ou por aquele estado-nação para escrever uma História que, ao sedimentar a memória da nação, desautorizasse revoluções radicais. O projeto de muitos destes historicistas era certamente conservador, particularmente o dos historicistas das sete primeiras décadas do século XIX. A nação-estado que acolhia o historiador devia ser vista como uma espécie de “melhor dos mundos possíveis”. As melhorias deveriam vir através das ações habituais da Política tradicional. Embora o futuro existisse para muitos dos historicistas da Escola Alemã, ele não se apresentava como qualitativamente distinto do Presente ou do Passado, ou ao menos não representava um mundo melhor a ser atingido, pois isto indicaria que o Presente deveria ser superado. Deste modo, no que concerne à Temporalidade Historicista, pode-se dizer que o Presente tende a incorporar o Passado, embora seja dele distinto, formando um contínuo que constitui a contemporaneidade, sendo que o Passado legitima o Presente no caso dos historicistas vinculados, no século XIX, à estrutura estatal e aos projetos dos Estados Nacionais.
Com referência ao tempo historiográfico, o historicista costuma pensar em termos de uma Reconstituição do tempo da História Efetiva, o que se dá assumidamente a partir do ponto de vista do Historiador (sobretudo para o caso dos historicistas relativistas, que já começam a aparecer com maior freqüência a partir de meados do século XIX), e através da idéia de uma oposição da perspectiva da Compreensão à perspectiva da Explicação, que seria a das ciências naturais e exatas.
A tendência mais recorrente a legitimar historiograficamente o Presente, através de uma glorificação do estado-nacional e de sua memória, não impede de todo modo que sejam perceptíveis variações entre os vários historicistas. É interessante o caso de Leopold von Ranke, considerado por muitos como o “pai do historicismo alemão”. Ranke fora contratado pela Monarquia Prussiana para glorificar historiograficamente este estado e sua memória, e para narrar esta história de uma maneira em que não se vissem motivadas as atitudes revolucionárias, mas sim a ideia de que as melhorias na vida humana e nacional deveriam ser atingidas através de reformas. Tornou-se amigo de Frederico Guilherme da Prússia e de Maximiliano da Baviera, e alcançou uma excelente posição social através de seu trabalho como historiador. Por outro lado, é muito interessante a maneira como percebe as épocas do Passado. Apesar de glorificar a nação que acolhia seu trabalho, e de atender às necessidades do governante, ele via cada época como “perfeita em si mesma”, de modo que nenhuma delas, nem mesmo o seu Presente, possuía um grau de importância maior do que as outras épocas. A passagem de uma época para outra não representava uma superação da época anterior, como haviam proposto tantos dos historiadores do século XIX e, na sua própria época, Hegel:
“Eu afirmo que cada época provém imediatamente de Deus, e o seu valor não reside fora dela, mas na sua existência mesma, na sua peculiaridade. [...] Cada época deve ser vista como algo válido e mostra-se altamente digna de consideração” (RANKE, apud BODEI, 2001, p.56).
Fora da Alemanha, onde o predomínio da concepção historicista é evidente, teremos inúmeros outros exemplos de historiadores que, através da perspectiva historicista, buscam “reconstituir” uma história que situa a sua própria época como o melhor dos mundos que poderia ser atingido, resultando que a partir daí as transformações deveriam se dar através de reformas no quadro da política tradicional. Assim, na Inglaterra de meados do século XIX teremos a obra sobre a História da Inglaterra (1849) de Thomas Babbington Macaulay (1800-1859), que pretende reconstituir o passado histórico com vistas a mostrar uma progressiva ascensão “em direção às formas da liberdade constitucional inglesa” (FONTANA, 2004, p.233). Isto implica, para o caso do historiador whig Macaulay, em compreender a História em termos de graduais vitórias dos reformistas whigs contra os tories, que aparecem como defensores do status quo e como freios à progressiva evolução política liderada pelos whigs . Portanto, o tempo histórico apresenta-se aqui linear e progressivo. Mas não há mais muito o que esperar do futuro, senão melhorias que virão das reformas políticas e do desenvolvimento tecnológico. Macaulay, por exemplo, tal como seu antagonista escocês Thomas Carlyle (1795-1881), sustentava enfaticamente que o sufrágio universal seria “incompatível com a existência da civilização” (FONTANA, 2004, p.232).
O Historicismo Relativista, nas suas várias versões, irá aprofundar de uma nova maneira a concepção do tempo histórico. Para o historicismo presentista de fins do século XIX ou do século XX, através de nomes como os de Benedetto Croce (1866-1952) ou Collingwood (1889-1943) – mas também para outras correntes de pensamento como a do “pragmatismo” de John Dewey (1859-1952) – cada Presente possui o seu Passado, reescrevendo a sua história. Já não há aqui nenhuma pretensão de “narrar os fatos tal como eles se deram”, mas sim o objetivo de narrar os fatos de acordo com o ponto de vista e o interesse e motivações de uma época, de uma escola historiográfica nacional, ou mesmo de um historiador. O Passado tornar-se-á construção do Presente. Esta leitura também será mais tarde incorporada pela Escola dos Annales, sendo que se frisará naquele movimento que o Passado é construção problematizada do Presente. Será esta, também, a posição da escola presentista americana, através de historiadores como Charles Beard (1874-1948) e Carl Becker (1873-1945).
Retornemos, por ora, aos debates da historiografia no século XIX. Enquanto os estados-nacionais europeus convocavam historiadores historicistas para a reconstituição da História e da Memória nacionais, a própria Alemanha do século XIX traria, das fileiras oriundas da chamada ‘esquerda hegeliana’ (um setor mais crítico do pensamento derivado de Hegel) um nome que estaria destinado a mudar a historiografia ocidental, senão no seu próprio século, ao menos no século seguinte. Karl Marx, conjuntamente com Friedrich Engels, seria um dos fundadores do Materialismo Histórico – uma concepção da história que retoma a dialética hegeliana e a combina a novas idéias, como a de “luta de classes”. Para os fundadores do Materialismo Histórico existem duas histórias entrelaçadas: a “história da luta de classes’ e a ‘história dos modos de produção’. Uma está dentro da outra. Os modos de produção sucedem-se na história como grandes épocas ou sistemas econômico-sociais, aos quais corresponde um determinado universo cultural e ideológico perfeitamente ajustado à base econômico-social. As classes sociais em luta estão sempre relacionadas a posições específicas dentro do modo de produção que as fez surgir, e do seu confronto de interesses surgem as contradições que movimentam a dialética do materialismo histórico – não mais uma dialética idealista, como a de Hegel, mas uma dialética materialista, na qual as grandes transformações sempre começam na base econômico social, a partir do desenvolvimento das forças produtivas. Seria necessário buscar, para o Materialismo Histórico, uma representação que desse conta deste duplo tempo que entrelaça a “história da luta de classes” com a “história dos modos de produção”.
A linha reta que representa a “luta de classes” é alimentada por contínuos círculos dialéticos internos (ver no artigo em referência os esquemas visuais), mas no âmbito mais amplo não deixa de ser uma linha reta que aponta teleologicamente para o futuro: uma sociedade sem classes que corresponderá ao Modo de Produção Socialista. Os blocos que se sucedem na “história dos modos de produção” correspondem a estruturas ou sistemas bem diferenciados entre si, cada qual com seu próprio padrão de racionalidade e organização social. Os modos de produção separam-se uns dos outros por rupturas, que podem corresponder a revoluções sociais (ou então a outros tipos de “revoluções”, como a revolução agrícola, que permitiu o rompimento em relação à economia de coleta ainda no período pré-histórico, ou então a revolução urbana, que inicia o período histórico propriamente dito com as grandes civilizações urbanas. O ‘Quadro 8’ [ver no artigo completo] sintetiza os aspectos fundamentais do tempo do Materialismo Histórico.
Deve-se notar ainda, na concepção temporal proporcionada pelo Materialismo Histórico, que pode ser entrevista ainda uma ‘dialética de tempos diferenciados’ por dentro deste tempo meta-narrativo que conta a história da ‘luta de classes’ e da sucessão de ‘modos de produção’ . Se o movimento dialético da História dá-se através do confronto entre as ‘forças produtivas’ e as ‘relações de produção’ – duas faces de um determinado ‘modo de produção’ que começam a certa altura se contraditar embora na origem tenham sido feitas umas para as outras – isto ocorre, pode-se aventar, em termos de uma contradição entre duas velocidades diferenciadas de tempo. As forças de produção constituem a parte mais dinâmica de um modo de produção, ao mesmo na corrente mais clássica do Materialismo Histórico. Jamais cessam de se transformar as forças de produção, de se desenvolver, de se impulsionarem para a frente. Desenvolvimentos tecnológicos as impulsionam para o futuro, os modos de trabalho se desenvolvem, os trabalhadores se aprimoram como sujeitos de produção, inclusive adquirindo maior consciência de classe. As ‘relações de produção’, contudo, que tendem a criar hierarquias sociais bem-estabelecidas e redes de deveres, limitações e privilégios para os vários níveis sociais envolvidos no processo produtivo, dando origem a um certo sistema de propriedade e de apropriação de recursos. Haverá uma mudança muito mais lenta nas ‘relações de produção’, uma velocidade menor do seu tempo histórico (alguns irão argumentar mesmo que as ‘relações de produção’ são estáticas, isto é, imóveis, transformando-se por isto em um ponto de inércia que deverá necessariamente vencido pelas forças produtivas para que seja possível a progressão dialética com vistas ao estabelecimento de um novo modo de produção.
Uma leitura ou outra, pode-se dizer que existe também por dentro do próprio modo de produção um confronto entre dois tempos históricos diferenciados, o das ‘forças de produção’, que produz mudanças em uma velocidade maior, e o das ‘relações de produção’, que só lentamente se transforma, ou se mostra mesmo imóvel. De todo modo, ao final do processo que se estabelece a partir desta dialética de durações, o sistema tende a ser impulsionado para a frente. O Materialismo Histórico, ao menos na habitual versão que se associa ao ideal de atingir um dia o ‘modo de produção socialista’, ou uma ‘sociedade sem classes’, continua a constituir como aparência mais externa uma linha reta que aponta para o futuro.
O texto aqui adaptado pode ser encontrado em:
http://www.revista.ufal.br/criticahistorica/index.php?option=com_content&view=article&id=72:os-tempos-da-historia&catid=41:artigos&Itemid=56
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BARROS, José D'Assunção "Os Tempos da História: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX". Revista Crítica Histórica. Ano 1, n°2. Alagoas: UFAL, 2010. p.180-208.
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Referências Bibliográficas:
BARROS, José D'Assunção "Os Tempos da História: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX". Revista Crítica Histórica. Ano 1, n°2. Alagoas: UFAL, 2010. p.180-208. http://ning.it/hoEWu4
BODEI, Remo. A História tem um sentido? Bauru: EDUSC, 2001 [original: 1997]
FONTANA, Josep. A História dos Homens. Bauru: EDUSC, 2004 [original: 2000].
José D'Assunção Barros
E-mail: jose.d.assun@globomail.com
O Tempo (4). O Tempo Iluminista e a noção de Progresso
Tal como assinala Koselleck em Passado Futuro, o projeto moderno do Iluminismo vê a história como uma marcha do Espírito Universal em direção à Liberdade. A História torna-se aqui, para retomar a expressão utilizada por Koselleck, um “singular coletivo”, uma grande história da humanidade, e é sintomático que a palavra “História”, no singular, substitua a expressão “Histórias”, no plural, ainda muito utilizada no período da História Teológica pré-iluminista para designar a superposição de diversas histórias superpostas que foram se acumulando na experiência humana.
O surgimento e desenvolvimento da noção de Progresso, tão bem estudado por Robert Nisbet em seu ensaio A História da Ideia de Progresso (1985) desempenhou um papel fundamental não apenas para as novas concepções historiográficas que iriam surgir, como também para trazer sustentação à maior parte das visões de mundo que foram se constituindo no ocidente, fornecendo um traço importante para a elaboração das Identidades e para a auto-definição das sociedades, grupos sociais e indivíduos no ocidente (DIEHL, 2002, p.21-44).
Emmanuel Kant, filósofo que, como Hegel, atribuía uma importância particular à História, pode ser destacado como exemplo do modelo iluminista. Para ele, a História caminha na direção do melhor. Em sua interpretação específica, a competição entre os seres humanos constitui o grande motor da história – gerando discórdias e concórdias entre os homens e, por uma razão ou por outra, conduzindo-os coletivamente através do Progresso. E se as ações humanas incluem as pequenas mesquinharias, os interesses privados, os movimentos individualistas e os vícios humanos, a história termina por transmudar em utilidade coletiva todo este entrelaçado de ações humanas. Assim, por exemplo, se é da avareza que surge o comércio, este se torna contudo um ganho para a civilização (BODEI, 2001, p.46), um fator de progresso.
Teleológico e Otimista, Racional e Idealista, o modelo introduzido pelo projeto iluminista irá encontrar mais tarde uma sofisticada formulação com Hegel, que aprimora a concepção dialética a adapta a esta concepção otimista, além de reformular esta concepção teleológica de uma história do Espírito de acordo com os interesses oitocentistas do Estado-Nação, o que o leva a apresentar, de certo modo, uma perspectiva mais conservadora, tal como requeriam os novos tempos da restauração.
Cada uma destas agências – o Espírito, a Liberdade, a Razão, o Estado – mas também o Povo, acham-se cuidadosamente refletidos em sua obra de introdução à filosofia da história que foi intitulada A Razão na História (2008). Mas, vale dizer, embora prossiga a heroica leitura do Iluminismo como manifestação da Razão contra os preconceitos de sua época, o Hegel de Fenomenologia do Espírito já desconfia da capacidade do povo como força autônoma. Enquanto no item 341 de A Fenomenologia do Espírito há uma definição do Iluminismo como “pura inteligência”, no item 342 Hegel já se refere a “má inteligência da multidão” (2007, p.373, 374). Sintomaticamente, reaparece ali a caminhada do Iluminismo, a meta-história da Razão que avança para o seu destino de realização plena, mas o “povo”, em sentido depreciativo de multidão manipulável, já se alinha no campo das forças retrógradas. Esboça-se também uma crítica contra a ‘singularidade’, aquilo que se afasta da razão coletiva, e podemos entrever aqui alguns ecos do embate entre o paradigma generalista do positivismo e o paradigma particularizante que já ia sendo proposto pelo historicismo:
“O Iluminismo não enfrenta indistintamente estes três lados do inimigo [clero, déspota, povo]; com efeito, sendo sua essência inteligência pura – que é universal em si e para si – sua verdadeira relação com o outro extremo é aquela em que o Iluminismo se dirige ao [que há de] comum a ambos. / O lado da Singularidade, que se isola da consciência espontânea universal, é o seu oposto [...]” (HEGEL, 2007, p.375).
De todo modo, o modelo de tempo que aqui se pressupõe é o do vetor que aponta para um futuro antecipável: o da vitória da Razão Humana. A história, em Hegel, é movida por uma combinação entre as paixões humanas e a ‘astúcia da Razão’, e não é por acaso que o filósofo, a certa altura, utiliza a certa altura a metáfora dos “vapores” e do “vento”. As paixões dos indivíduos constituem as energias que surgem na história e que darão movimento a esta mesma história, mas é a ‘astúcia da Razão’ que as jogará umas contra outras, produzindo uma determinada direção que, ao fim das contas, resulta em progresso.
A concepção histórica de Hegel também concede um lugar importante aos grandes indivíduos, cumprindo notar que a grandeza destes está precisamente no fato de que eles se tornam “expressão de forças coletivas”. Através destes grandes homens, mas também através das paixões humanas que são levadas a se entrechocar com vistas a serem conduzidas a uma racionalidade oculta, uma força irresistível vai se impondo à História. Forçando a sua entrada de modo a irromper como novo Presente e a romper com o Passado em um processo dialético, no qual uma nova semente como que busca destruir e renovar a sua casca, “o espírito escondido bate às portas do presente” (HEGEL). Das contradições surge o movimento da História, em uma interpretação dialética do tempo histórico que, ao contrário da que se verá em Marx, é ainda idealista, originada no Espírito em sua caminhada para a liberdade cada vez maior em relação às limitações humanas.
Linear em simples linha reta, como pode ser imaginado a partir da perspectiva de alguns iluministas, ou, ainda linear, mas, com Hegel, articulado a pequenos circuitos dialéticos que impulsionam a história para a frente através do confronto entre Teses e Antíteses com vistas a atingir a Síntese e gerar novos recomeços a partir de um novo ponto, o Tempo se apresenta aqui como o inevitável caminho a ser percorrido pela Humanidade em sua marcha para o Progresso, para a Liberdade, e para a plena realização da Razão Humana. O Real é Racional, e a história efetiva e a consciência histórica coincidem, de modo que “fazer história” e “fazer a história” são experiências que se recobrem.
O projeto iluminista e a história hegeliana, tal como observa Koselleck em seu livro Futuro Passado (1979), concebem a História do ponto de vista de uma Consciência Universal que se afirma e se realiza a cada ciclo como reflexão, exteriorização e retorno a si, de modo que é possível a cada avanço interiorizar uma consciência sempre superior de si (Reis, 2006). Estamos então em pleno otimismo em relação à racionalidade, e o tempo histórico pode ser concebido como lugar da sua realização crescente e cada vez mais aperfeiçoada. Do mesmo modo, os historiadores não deveriam fazer mais do que perceber e dar a perceber a racionalidade inerente aos processos históricos, da mesma forma que os processos históricos coincidem com a triunfante história desta mesma racionalidade .
Sintetizando os seus principais aspectos, o tempo iluminista mostra-se aqui Linear (ou linear-dialético, para o caso do Tempo Hegeliano), e também Progressivo, Acelerado, Teleológico (um vetor apontando para o futuro do Reino da Razão Plena) No caso do Iluminismo é ainda um tempo cravejado de Eventos que traduzem evolução e revoluções, embora já na perspectiva hegeliana, um modelo que surge já no período da Restauração, prevaleça apenas o caráter evolutivo dos eventos.
Este ponto, aliás, constitui uma sutil diferença entre o Tempo Iluminista e o Tempo Hegeliano. Em uma modernidade que acelera o tempo em direção ao futuro realizador da máxima Liberdade, o projeto iluminista facilmente sacrifica o passado-presente no altar da Deusa Razão com vistas à realização deste futuro pleno, de modo que a revolução, a violência contra o Presente em nome do Futuro, encontra-se plenamente justificada. Se retornarmos aos tempos da Revolução Francesa, podemos facilmente compreender sob esta perspectiva de aceleração em direção ao futuro a radical violência contra o Presente-Passado que foi consubstanciada no período do Terror.
Remo Bodei, ao discutir as filosofias da História no século XVIII em seu livro 'A História tem um Sentido?' (1997), chama atenção para os pequenos ajustes que precisaram ser feitos nesta concepção iluminista do tempo sob a pressão das novas descobertas geográficas. Presos à sua concepção universalista da história e incapazes de compreender as diversas sociedades do planeta como dotadas de desenvolvimentos próprios e específicos (como os poucos historiadores românticos de sua época e alguns dos historicistas do século seguinte) alguns dos historiadores iluministas conceberam o Tempo Histórico como dotados de tempos múltiplos correspondentes às diversas sociedades, mas todos seguindo o mesmo padrão de desenvolvimento e referidos a certo grau de desenvolvimento no espectro que ia da selvageria à civilização. Assim, Bodei chama atenção para um historiador jesuíta do século XVIII chamado Lafitteau, que ao estudar os iroqueses do Canadá vira neles o grau de cultura que um dia tiveram os atenienses clássicos, da época de Péricles. Considerava-os quase ultrapassando a barbárie, e já capazes de elaborar discursos retóricos como o dos gregos do período clássico (BODEI, 2001, p.30).
Bodei prossegue mostrando que, na concepção do historiador jesuíta Lafitteau, os iroqueses do Canadá estavam em defasagem temporal e podiam ser considerados como “antigos atenienses que viviam no presente histórico médio da Europa”. Seria mesmo possível acrescentar que “os ameríndios da Amazônia seriam nossos contemporâneos que estacionaram na Idade da Pedra” (BODEI, 2001, p.30). Uma tal concepção situa a Europa das Luzes na vanguarda de uma evolução, apresentando-a como estágio mais desenvolvido de um mundo coabitado por sociedades mais atrasadas neste mesmo caminho evolutivo, ou mesmo estagnadas.
Outra versão “evolutiva” do Tempo Iluminista, ainda no século XVIII, seria elaborada pelo filósofo e matemático francês Condorcet (1743-1797) . Ele dividirá a história do progresso espiritual em dez eras, acreditando que ele e seus contemporâneos estariam vivendo a transição da nona para a décima era – uma era que poderia ser compreendida como uma “sociedade de massa”. Remo Bodei (2001, p.35) sugere que o modelo de inteligibilidade dos acontecimentos proposto por Condorcet menos se assemelharia a uma simples reta temporal do que a uma “escadaria” – isto porque a História de determinado período retoma todos os progressos das fases históricas precedentes. Destarte, o Progresso teria apresentado um movimento extremamente lento nos degraus iniciais (como, por exemplo, a passagem para a era agrícola), e a partir daí um ritmo cada vez mais acelerado.
É aliás particularmente curioso e impressionante que estas idéias de Condorcet sobre a História – assinaladas por um “inacreditável otimismo histórico” (SOUZA, 2001, p.153) e registradas no texto que recebeu o título de Esboço de um quadro histórico do progresso do espírito humano (1793) – tenham sido postas por escrito em um momento extremamente difícil na vida de Condorcet, que estava então clandestino e encontrava-se perseguido por ter publicado um panfleto pela Convenção naquele ano que antecederia o ano de sua prisão e morte em uma cela na pequena cidade francesa de Clamart.
Conforme a sua concepção sobre os progressivos estágios do desenvolvimento humano, na verdade já acalentada desde 1772 (antes de entrar para a atividade política), Condorcet acreditava que, àquela altura da História, o estado de evolução e aperfeiçoamento da humanidade não mais poderia ser interrompido, a não ser que ocorresse alguma catástrofe mundial, e que por isto caberia aos homens iluminados pela razão acelerar este progresso humano, que por si mesmo era inevitável (SOUZA, 2001, p.154). O Presente que então viviam ele e seus contemporâneos – passagem triunfal para o último degrau da evolução humana – afirmava definitivamente a sua superioridade sobre todas as épocas do Passado, e, depois de adentrarem este degrau supremo, os seres humanos dos séculos vindouros não fariam mais do assistir ao acrescentar de novas luzes a um progresso inesgotável. A História, portanto, fazendo-se coincidir o curso dos acontecimentos e a sua própria narrativa, não deveria fazer mais do que registrar aquela que seria a lei suprema do desenvolvimento humano, a sua “perfectibilidade indefinida” . O Progresso, dito de outro modo, constituía a grande lei que imprimia regularidade ao curso da História, e conhecer esta última, isto é, refletir sobre o que havia sido o homem até então e sobre o seu estado atual poderia contribuir para oferecer aos homens ilustrados os meios de acelerar o progresso e aproximar mais rapidamente a humanidade do futuro .
É interessante notar que, acompanhando a tendência mais geral do iluminismo, Condorcet tratava a humanidade como um único povo, tal como já haviam feito David Hume, Henri Rousseau e inúmeros outros homens de sua época, por oposição a contra vozes mais excepcionais como a de Herder e por contraste com a tendência historicista que, no século XIX, afirmaria a particularidade de cada povo e portanto o seu filão histórico particularizante. Já a história iluminista, inclusive a de Condorcet, tendia a buscar generalizações e leis que se aplicassem a todo o gênero humano, e a história da humanidade não abarcava senão povos em estágios menos ou mais avançados em relação ao desenvolvimento possível do homem. Os métodos previstos por Condorcet para esta escrita historiográfica deveriam trazer à tona este desenvolvimento único – colocar em relevo por sobre a ampla diversidade de povos o que neles havia de uma humanidade comum, que era o que realmente importava:
“[tratava-se de escolher os fatos na história dos diferentes povos e] aproximá-los, combiná-los, para deles extrair a história hipotética de um povo único, e formar o quadro de seus progressos” (CONDORCET, Esquisse, p.86) [SOUZA, 2001, p.157]
Por outro lado, é certo que ao intenso otimismo condorcetiano se contrapunha um setor pessimista ou menos otimista da Ilustração. Rousseau, contra o enaltecimento dos progressos da civilização, já havia enaltecido o “bom selvagem”. Montesquieu, a pretexto de sua célebre obra sobre a Grandeza e Decadência dos Romanos, já discorrera mais sistematicamente sobre a questão da decadência dos impérios, e Diderot e D’Alembert já haviam refletido sobre a ruína das grandes realizações humanas com as inevitáveis revoluções (SOUZA, 2001, p.155). De todo modo, a apaixonada fé no progresso humano do setor otimista da intelectualidade iluminista passaria ao século seguinte, embora já não mais sob o signo inquietante da Revolução.
Este texto, seu princípio e sua continuação, também pode ser encontrado em:
http://www.revista.ufal.br/criticahistorica/index.php?option=com_content&view=article&id=72:os-tempos-da-historia&catid=41:artigos&Itemid=56
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BARROS, José D'Assunção "Os Tempos da História: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX". Revista Crítica Histórica. Ano 1, n°2. Alagoas: UFAL, 2010. p.180-208.
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Referências Bibliográficas:
BARROS, José D'Assunção "Os Tempos da História: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX". Revista Crítica Histórica. Ano 1, n°2. Alagoas: UFAL, 2010. p.180-208. http://ning.it/hoEWu4
BODEI, Remo. A História tem um sentido? Bauru: EDUSC, 2001 [original: 1997].
CONDORCET, Esquisse d’um tableau historique dês progreès de l’esprit huymain. Paris: Garnier-Flammarion, 1988 [Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Campinas; Edunicamp, 1990] [original: 1793]
DIEHL, Astor. « Aspectos da desilusão da idéia de progresso na História e suas implicações” in Cultura Histórica – memória, identidade e representação. Bauru: EDUSC, 2002. p.21-44.
HEGEL. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2007.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado – contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006 [original: 1979].
NISBET, Robert. História da idéia de Progresso. Brasília: UNB, 1985.
REIS, José Carlos. Tempo, História e Compreensão Narrativa em Paul Ricoeur. Locus, vol.12, n°1, jan/jul 2006.
SOUZA, Maria das Graças de. “Condorcet: História e Revolução” In Ilustração e História. São Paulo: Discurso Editorial, 2001. p.151-196.
José D'Assunção Barros
E-mail: jose.d.assun@globomail.com
O surgimento e desenvolvimento da noção de Progresso, tão bem estudado por Robert Nisbet em seu ensaio A História da Ideia de Progresso (1985) desempenhou um papel fundamental não apenas para as novas concepções historiográficas que iriam surgir, como também para trazer sustentação à maior parte das visões de mundo que foram se constituindo no ocidente, fornecendo um traço importante para a elaboração das Identidades e para a auto-definição das sociedades, grupos sociais e indivíduos no ocidente (DIEHL, 2002, p.21-44).
Emmanuel Kant, filósofo que, como Hegel, atribuía uma importância particular à História, pode ser destacado como exemplo do modelo iluminista. Para ele, a História caminha na direção do melhor. Em sua interpretação específica, a competição entre os seres humanos constitui o grande motor da história – gerando discórdias e concórdias entre os homens e, por uma razão ou por outra, conduzindo-os coletivamente através do Progresso. E se as ações humanas incluem as pequenas mesquinharias, os interesses privados, os movimentos individualistas e os vícios humanos, a história termina por transmudar em utilidade coletiva todo este entrelaçado de ações humanas. Assim, por exemplo, se é da avareza que surge o comércio, este se torna contudo um ganho para a civilização (BODEI, 2001, p.46), um fator de progresso.
Teleológico e Otimista, Racional e Idealista, o modelo introduzido pelo projeto iluminista irá encontrar mais tarde uma sofisticada formulação com Hegel, que aprimora a concepção dialética a adapta a esta concepção otimista, além de reformular esta concepção teleológica de uma história do Espírito de acordo com os interesses oitocentistas do Estado-Nação, o que o leva a apresentar, de certo modo, uma perspectiva mais conservadora, tal como requeriam os novos tempos da restauração.
Cada uma destas agências – o Espírito, a Liberdade, a Razão, o Estado – mas também o Povo, acham-se cuidadosamente refletidos em sua obra de introdução à filosofia da história que foi intitulada A Razão na História (2008). Mas, vale dizer, embora prossiga a heroica leitura do Iluminismo como manifestação da Razão contra os preconceitos de sua época, o Hegel de Fenomenologia do Espírito já desconfia da capacidade do povo como força autônoma. Enquanto no item 341 de A Fenomenologia do Espírito há uma definição do Iluminismo como “pura inteligência”, no item 342 Hegel já se refere a “má inteligência da multidão” (2007, p.373, 374). Sintomaticamente, reaparece ali a caminhada do Iluminismo, a meta-história da Razão que avança para o seu destino de realização plena, mas o “povo”, em sentido depreciativo de multidão manipulável, já se alinha no campo das forças retrógradas. Esboça-se também uma crítica contra a ‘singularidade’, aquilo que se afasta da razão coletiva, e podemos entrever aqui alguns ecos do embate entre o paradigma generalista do positivismo e o paradigma particularizante que já ia sendo proposto pelo historicismo:
“O Iluminismo não enfrenta indistintamente estes três lados do inimigo [clero, déspota, povo]; com efeito, sendo sua essência inteligência pura – que é universal em si e para si – sua verdadeira relação com o outro extremo é aquela em que o Iluminismo se dirige ao [que há de] comum a ambos. / O lado da Singularidade, que se isola da consciência espontânea universal, é o seu oposto [...]” (HEGEL, 2007, p.375).
De todo modo, o modelo de tempo que aqui se pressupõe é o do vetor que aponta para um futuro antecipável: o da vitória da Razão Humana. A história, em Hegel, é movida por uma combinação entre as paixões humanas e a ‘astúcia da Razão’, e não é por acaso que o filósofo, a certa altura, utiliza a certa altura a metáfora dos “vapores” e do “vento”. As paixões dos indivíduos constituem as energias que surgem na história e que darão movimento a esta mesma história, mas é a ‘astúcia da Razão’ que as jogará umas contra outras, produzindo uma determinada direção que, ao fim das contas, resulta em progresso.
A concepção histórica de Hegel também concede um lugar importante aos grandes indivíduos, cumprindo notar que a grandeza destes está precisamente no fato de que eles se tornam “expressão de forças coletivas”. Através destes grandes homens, mas também através das paixões humanas que são levadas a se entrechocar com vistas a serem conduzidas a uma racionalidade oculta, uma força irresistível vai se impondo à História. Forçando a sua entrada de modo a irromper como novo Presente e a romper com o Passado em um processo dialético, no qual uma nova semente como que busca destruir e renovar a sua casca, “o espírito escondido bate às portas do presente” (HEGEL). Das contradições surge o movimento da História, em uma interpretação dialética do tempo histórico que, ao contrário da que se verá em Marx, é ainda idealista, originada no Espírito em sua caminhada para a liberdade cada vez maior em relação às limitações humanas.
Linear em simples linha reta, como pode ser imaginado a partir da perspectiva de alguns iluministas, ou, ainda linear, mas, com Hegel, articulado a pequenos circuitos dialéticos que impulsionam a história para a frente através do confronto entre Teses e Antíteses com vistas a atingir a Síntese e gerar novos recomeços a partir de um novo ponto, o Tempo se apresenta aqui como o inevitável caminho a ser percorrido pela Humanidade em sua marcha para o Progresso, para a Liberdade, e para a plena realização da Razão Humana. O Real é Racional, e a história efetiva e a consciência histórica coincidem, de modo que “fazer história” e “fazer a história” são experiências que se recobrem.
O projeto iluminista e a história hegeliana, tal como observa Koselleck em seu livro Futuro Passado (1979), concebem a História do ponto de vista de uma Consciência Universal que se afirma e se realiza a cada ciclo como reflexão, exteriorização e retorno a si, de modo que é possível a cada avanço interiorizar uma consciência sempre superior de si (Reis, 2006). Estamos então em pleno otimismo em relação à racionalidade, e o tempo histórico pode ser concebido como lugar da sua realização crescente e cada vez mais aperfeiçoada. Do mesmo modo, os historiadores não deveriam fazer mais do que perceber e dar a perceber a racionalidade inerente aos processos históricos, da mesma forma que os processos históricos coincidem com a triunfante história desta mesma racionalidade .
Sintetizando os seus principais aspectos, o tempo iluminista mostra-se aqui Linear (ou linear-dialético, para o caso do Tempo Hegeliano), e também Progressivo, Acelerado, Teleológico (um vetor apontando para o futuro do Reino da Razão Plena) No caso do Iluminismo é ainda um tempo cravejado de Eventos que traduzem evolução e revoluções, embora já na perspectiva hegeliana, um modelo que surge já no período da Restauração, prevaleça apenas o caráter evolutivo dos eventos.
Este ponto, aliás, constitui uma sutil diferença entre o Tempo Iluminista e o Tempo Hegeliano. Em uma modernidade que acelera o tempo em direção ao futuro realizador da máxima Liberdade, o projeto iluminista facilmente sacrifica o passado-presente no altar da Deusa Razão com vistas à realização deste futuro pleno, de modo que a revolução, a violência contra o Presente em nome do Futuro, encontra-se plenamente justificada. Se retornarmos aos tempos da Revolução Francesa, podemos facilmente compreender sob esta perspectiva de aceleração em direção ao futuro a radical violência contra o Presente-Passado que foi consubstanciada no período do Terror.
Remo Bodei, ao discutir as filosofias da História no século XVIII em seu livro 'A História tem um Sentido?' (1997), chama atenção para os pequenos ajustes que precisaram ser feitos nesta concepção iluminista do tempo sob a pressão das novas descobertas geográficas. Presos à sua concepção universalista da história e incapazes de compreender as diversas sociedades do planeta como dotadas de desenvolvimentos próprios e específicos (como os poucos historiadores românticos de sua época e alguns dos historicistas do século seguinte) alguns dos historiadores iluministas conceberam o Tempo Histórico como dotados de tempos múltiplos correspondentes às diversas sociedades, mas todos seguindo o mesmo padrão de desenvolvimento e referidos a certo grau de desenvolvimento no espectro que ia da selvageria à civilização. Assim, Bodei chama atenção para um historiador jesuíta do século XVIII chamado Lafitteau, que ao estudar os iroqueses do Canadá vira neles o grau de cultura que um dia tiveram os atenienses clássicos, da época de Péricles. Considerava-os quase ultrapassando a barbárie, e já capazes de elaborar discursos retóricos como o dos gregos do período clássico (BODEI, 2001, p.30).
Bodei prossegue mostrando que, na concepção do historiador jesuíta Lafitteau, os iroqueses do Canadá estavam em defasagem temporal e podiam ser considerados como “antigos atenienses que viviam no presente histórico médio da Europa”. Seria mesmo possível acrescentar que “os ameríndios da Amazônia seriam nossos contemporâneos que estacionaram na Idade da Pedra” (BODEI, 2001, p.30). Uma tal concepção situa a Europa das Luzes na vanguarda de uma evolução, apresentando-a como estágio mais desenvolvido de um mundo coabitado por sociedades mais atrasadas neste mesmo caminho evolutivo, ou mesmo estagnadas.
Outra versão “evolutiva” do Tempo Iluminista, ainda no século XVIII, seria elaborada pelo filósofo e matemático francês Condorcet (1743-1797) . Ele dividirá a história do progresso espiritual em dez eras, acreditando que ele e seus contemporâneos estariam vivendo a transição da nona para a décima era – uma era que poderia ser compreendida como uma “sociedade de massa”. Remo Bodei (2001, p.35) sugere que o modelo de inteligibilidade dos acontecimentos proposto por Condorcet menos se assemelharia a uma simples reta temporal do que a uma “escadaria” – isto porque a História de determinado período retoma todos os progressos das fases históricas precedentes. Destarte, o Progresso teria apresentado um movimento extremamente lento nos degraus iniciais (como, por exemplo, a passagem para a era agrícola), e a partir daí um ritmo cada vez mais acelerado.
É aliás particularmente curioso e impressionante que estas idéias de Condorcet sobre a História – assinaladas por um “inacreditável otimismo histórico” (SOUZA, 2001, p.153) e registradas no texto que recebeu o título de Esboço de um quadro histórico do progresso do espírito humano (1793) – tenham sido postas por escrito em um momento extremamente difícil na vida de Condorcet, que estava então clandestino e encontrava-se perseguido por ter publicado um panfleto pela Convenção naquele ano que antecederia o ano de sua prisão e morte em uma cela na pequena cidade francesa de Clamart.
Conforme a sua concepção sobre os progressivos estágios do desenvolvimento humano, na verdade já acalentada desde 1772 (antes de entrar para a atividade política), Condorcet acreditava que, àquela altura da História, o estado de evolução e aperfeiçoamento da humanidade não mais poderia ser interrompido, a não ser que ocorresse alguma catástrofe mundial, e que por isto caberia aos homens iluminados pela razão acelerar este progresso humano, que por si mesmo era inevitável (SOUZA, 2001, p.154). O Presente que então viviam ele e seus contemporâneos – passagem triunfal para o último degrau da evolução humana – afirmava definitivamente a sua superioridade sobre todas as épocas do Passado, e, depois de adentrarem este degrau supremo, os seres humanos dos séculos vindouros não fariam mais do assistir ao acrescentar de novas luzes a um progresso inesgotável. A História, portanto, fazendo-se coincidir o curso dos acontecimentos e a sua própria narrativa, não deveria fazer mais do que registrar aquela que seria a lei suprema do desenvolvimento humano, a sua “perfectibilidade indefinida” . O Progresso, dito de outro modo, constituía a grande lei que imprimia regularidade ao curso da História, e conhecer esta última, isto é, refletir sobre o que havia sido o homem até então e sobre o seu estado atual poderia contribuir para oferecer aos homens ilustrados os meios de acelerar o progresso e aproximar mais rapidamente a humanidade do futuro .
É interessante notar que, acompanhando a tendência mais geral do iluminismo, Condorcet tratava a humanidade como um único povo, tal como já haviam feito David Hume, Henri Rousseau e inúmeros outros homens de sua época, por oposição a contra vozes mais excepcionais como a de Herder e por contraste com a tendência historicista que, no século XIX, afirmaria a particularidade de cada povo e portanto o seu filão histórico particularizante. Já a história iluminista, inclusive a de Condorcet, tendia a buscar generalizações e leis que se aplicassem a todo o gênero humano, e a história da humanidade não abarcava senão povos em estágios menos ou mais avançados em relação ao desenvolvimento possível do homem. Os métodos previstos por Condorcet para esta escrita historiográfica deveriam trazer à tona este desenvolvimento único – colocar em relevo por sobre a ampla diversidade de povos o que neles havia de uma humanidade comum, que era o que realmente importava:
“[tratava-se de escolher os fatos na história dos diferentes povos e] aproximá-los, combiná-los, para deles extrair a história hipotética de um povo único, e formar o quadro de seus progressos” (CONDORCET, Esquisse, p.86) [SOUZA, 2001, p.157]
Por outro lado, é certo que ao intenso otimismo condorcetiano se contrapunha um setor pessimista ou menos otimista da Ilustração. Rousseau, contra o enaltecimento dos progressos da civilização, já havia enaltecido o “bom selvagem”. Montesquieu, a pretexto de sua célebre obra sobre a Grandeza e Decadência dos Romanos, já discorrera mais sistematicamente sobre a questão da decadência dos impérios, e Diderot e D’Alembert já haviam refletido sobre a ruína das grandes realizações humanas com as inevitáveis revoluções (SOUZA, 2001, p.155). De todo modo, a apaixonada fé no progresso humano do setor otimista da intelectualidade iluminista passaria ao século seguinte, embora já não mais sob o signo inquietante da Revolução.
Este texto, seu princípio e sua continuação, também pode ser encontrado em:
http://www.revista.ufal.br/criticahistorica/index.php?option=com_content&view=article&id=72:os-tempos-da-historia&catid=41:artigos&Itemid=56
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BARROS, José D'Assunção "Os Tempos da História: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX". Revista Crítica Histórica. Ano 1, n°2. Alagoas: UFAL, 2010. p.180-208.
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Referências Bibliográficas:
BARROS, José D'Assunção "Os Tempos da História: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX". Revista Crítica Histórica. Ano 1, n°2. Alagoas: UFAL, 2010. p.180-208. http://ning.it/hoEWu4
BODEI, Remo. A História tem um sentido? Bauru: EDUSC, 2001 [original: 1997].
CONDORCET, Esquisse d’um tableau historique dês progreès de l’esprit huymain. Paris: Garnier-Flammarion, 1988 [Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Campinas; Edunicamp, 1990] [original: 1793]
DIEHL, Astor. « Aspectos da desilusão da idéia de progresso na História e suas implicações” in Cultura Histórica – memória, identidade e representação. Bauru: EDUSC, 2002. p.21-44.
HEGEL. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2007.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado – contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006 [original: 1979].
NISBET, Robert. História da idéia de Progresso. Brasília: UNB, 1985.
REIS, José Carlos. Tempo, História e Compreensão Narrativa em Paul Ricoeur. Locus, vol.12, n°1, jan/jul 2006.
SOUZA, Maria das Graças de. “Condorcet: História e Revolução” In Ilustração e História. São Paulo: Discurso Editorial, 2001. p.151-196.
José D'Assunção Barros
E-mail: jose.d.assun@globomail.com
Tempo (3). Do tempo linear do Cristianismo ao tempo linear da Historiografia dos séculos XVIII e XIX
Há uma complexa história na passagem do tempo circular da mitologia, ou mesmo da antiga circularidade política dos gregos antigos, para uma concepção linear de tempo. O pensamento religioso das igrejas monoteístas parece ter desempenhado um papel importante para a emergência desta nova maneira de ver o tempo. Tal como nos atesta Miceias Eliade em O Mito do Eterno Retorno (1969), mas também Germano Pattaro em A Concepção Cristã do Tempo (1975), os hebreus, com seu “monoteísmo profético”, estariam entre os primeiros – seguidos pelos cristãos – a introduzir como concepção de ordenação cósmica um Tempo linear, irreversível, teleológico, através do qual os eventos datados e localizados desempenhariam um papel fundamental para as narrativas bíblicas. Ao substituir pela ‘salvação futura’ prevista nas profecias a ‘redenção na origem’ que era proposta pelos rituais e concepções míticas, e ao introduzir os eventos como peças chaves neste caminho linear em direção ao grande acontecimento do Juízo Final, os hebreus e cristãos preparam, tal como observam autores vários, a ideia de Tempo que logo permitiria o surgimento da História .
Inventava-se com os judeus um novo tipo de História, orientada por uma linha única e voltada para o futuro, na qual a única macro-narrativa que tinha importância era a que se referia à trajetória do povo eleito. Contra o pano de fundo das pequenas histórias dos pagãos, os hebreus traziam a sua própria história a primeiro plano. Todos os eventos, mesmo os mais adversos, eram conclamados a participar de um plano que Deus tinha para um único povo, e até as mais ultrajantes derrotas perante os inimigos, como tão bem assinala Reinhart Koselleck no capítulo VI de Futuro Passado (1979), eram agora incorporadas como peças-chave neste enredo maior: nas narrativas judaicas estas derrotas tornavam-se penitência, “castigos que [os hebreus] foram capazes de suportar” (KOSELLECK, 2006, p.127).
Confirmando a tradição judaica recebida através do Velho Testamento, já é de fato um novo modelo de História – uma história universal com sentido único, e que aponta escatologicamente para um futuro no qual se eternizarão a salvação ou a condenação – aquele que é introduzido por Santo Agostinho em Cidade de Deus, e que, passando na Idade Média por Gioachino da Fiore (1145-1202), chegará até o século XVII e a primeira metade do século XVIII com Bossuet (1681) e Lessing . Trata-se de um passo além do modelo hebreu, precisamente porque o modelo agostiniano refere-se a uma história de todo o gênero humano, e não mais a uma contraposição entre a história de um povo eleito e as histórias menores dos pagãos (BODEI, 2001, p.18). De resto, esta História – que Santo Agostinho concebe em seis etapas por paralelismo com o modelo da Criação do Mundo em seis dias – parece situar o Futuro de fato como um “outro mundo”, radicalmente distinto deste complexo de Presente-Passado que corresponde à aventura humana em direção à salvação ou à condenação. O Futuro corresponderá ao momento em que finalmente o tempo histórico poderá ser interrompido, tal como se interrompera o tempo da Criação naquele “sétimo dia” no qual Deus pudera finalmente descansar após o trabalho da Criação.
Poderemos tentar aqui uma síntese acerca dos principais traços do padrão de temporalidade proposto pelo modelo histórico-teológico do Cristianismo. O Tempo é linear e “teleológico”, isto é, possui um “telos”, um “fim” a ser atingido . Este tempo linear é enquadrado por duas datas: a da Criação e a do Juízo Final, e no seu decorrer é pontilhado por eventos que expressam a Vontade Deus. Já não importa tanto o número de etapas que constituem este percurso – as “seis idades do mundo” de Santo Agostinho ou as três épocas de Gioacchino da Fiore – mas sim o fato de que as diversas doutrinas das idades do mundo eram concebidas de tal modo que, depois do nascimento de Cristo, estava-se vivendo já a última delas, o que implicava que “desde então não poderia acontecer mais nada de novo, pois o mundo se encontrava sob a perspectiva do Juízo Final” (KOSELLECK, 2006, p.128).
A função dos eventos em tal estrutura de tempo é singular. Cada evento só adquire seu real sentido quando inserido e compreendido no interior desta sequência relacionada ao futuro teológico . Trata-se, de fato, de uma história “transcendente” – isto é, conduzida de fora pela vontade divina . No que concerne à Temporalidade – isto é, no que se refere à relação entre Passado, Presente e Futuro que se estabelece a partir da escatologia cristã – o Futuro constitui um outro mundo, distinto do Presente-Passado, embora este se conduza para aquele. Por fim, pode-se dizer que o tempo historiográfico do historiador-teólogo (isto é, o terceiro tempo que é produzido pela história-conhecimento de um ponto de vista teológico-cristão) é reconstituído a partir de diversas histórias, que ilustram os vícios e virtudes e esclarecem a vontade de Deus.
Posteriormente, e acompanhando a mesma linearidade e teleologia, os iluministas do século XVIII proporiam o seu ajuste: substituir pela “utopia sócio-política” a escatologia, substituir pelo “Reino da Razão” o Paraíso Prometido no final da linha, e introduzir no interior da linearidade teleológica, agora “imanente”, um Espírito Absoluto, ao invés do Deus transcendente que intervém na História através de revelações e milagres inscritos nos eventos.
Estes exemplos, por ora, valem-nos para ressaltar que a diversidade das idéias de tempo não se refere apenas aos pensadores das várias escolas filosóficas e historiográficas, mas também se refere ao confronto entre civilizações e culturas humanas diversificadas, ou mesmo entre formas distintas de religiosidade, como acrescenta Ernst Cassirer em seu ensaio A Filosofia das Formas Simbólicas, na parte em que desenvolve uma reflexão sobre “A configuração do tempo na consciência mítica e religiosa” . Eis aqui uma primeira História do conceito de Tempo a ser considerada.
Diga-se de passagem, e acompanhando as reflexões de Juliana Bastos Marques em seu artigo sobre “O Conceito de Temporalidade e sua aplicação na historiografia antiga”, a interação do conceito de Tempo com a História – hoje tão óbvia e irredutível – tem também a sua história própria, e é importante destacar que o conceito original de História, entre os gregos, não se baseava na reflexão sobre a natureza do tempo, uma vez que etimologicamente a palavra significaria “pesquisa, informação, relato” (MARQUES, 2006, p. 65). Ademais, tanto com Heródoto como com Tulcídides, o que se tem, para nos expressarmos com alguma liberdade, é o que equivaleria hoje a uma História do Tempo Presente (ou, ao menos, do tempo recente), de modo que não ocorre aqui, ainda, a preocupação com uma temporalidade mais extensa . O objetivo principal da História, conforme formulado por Heródoto, era evitar que fossem esquecidas “as grandes façanhas dos gregos e dos bárbaros”; tratava-se de preservar aquilo que merecia ser lembrado do destino comum a todas as coisas, que era ser levado pelas correntezas do Lethes, o “rio do esquecimento” . Deste modo, Heródoto, e ainda Tulcídides, estavam muito mais preocupados com o seu passado recente, de modo que a sua história não trabalha com a noção de tempo. Já posteriormente, com o desenvolvimento dos gêneros proto-historiográficos da cronologia e da genealogia, a noção de temporalidade adentra definitivamente, com importância definitiva, o conceito de História .
Já nos referindo à História plenamente envolvida pela interação com a noção de temporalidade, outra aporia fundamental para compreender a relação entre Tempo e História é aquela que confronta o ‘tempo da ação’ e o ‘tempo da narrativa’. Com o ‘tempo da ação’ estamos no universo que se refere aos “Fios” que enredam a própria história efetiva, e com o ‘tempo da narrativa’ estamos já no âmbito deste Tempo que é Trama, para tomar emprestado de Ivan Domingues esta feliz metáfora que ilumina este segundo Tempo que surge na operação historiográfica como construção ou artefato literário. Ou seja, considerando que o historiador extrai os seus materiais da História Efetiva, e os reordena para compor a sua História-Conhecimento, impõe-se aqui um incontornável confronto entre o ‘tempo dos eventos’ ou ‘tempo do vivido’, intrincado emaranhado de fios com o qual o historiador se depara, e o ‘tempo da narrativa’, com o qual o historiador terá de lidar já como autor que precisa configurar um texto historiográfico.
Leia também a continuação deste texto em:
https://www.researchgate.net/publication/321025262_Os_Tempos_da_Historia_do_tempo_mitico_as_representacoes_historiograficas_do_seculo_XIX
.
BARROS, José D'Assunção "Os Tempos da História: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX". Revista Crítica Histórica. Ano 1, n°2. Alagoas: UFAL, 2010. p.180-208.
José D'Assunção Barros
E-mail: jose.d.assun@globomail.com
Inventava-se com os judeus um novo tipo de História, orientada por uma linha única e voltada para o futuro, na qual a única macro-narrativa que tinha importância era a que se referia à trajetória do povo eleito. Contra o pano de fundo das pequenas histórias dos pagãos, os hebreus traziam a sua própria história a primeiro plano. Todos os eventos, mesmo os mais adversos, eram conclamados a participar de um plano que Deus tinha para um único povo, e até as mais ultrajantes derrotas perante os inimigos, como tão bem assinala Reinhart Koselleck no capítulo VI de Futuro Passado (1979), eram agora incorporadas como peças-chave neste enredo maior: nas narrativas judaicas estas derrotas tornavam-se penitência, “castigos que [os hebreus] foram capazes de suportar” (KOSELLECK, 2006, p.127).
Confirmando a tradição judaica recebida através do Velho Testamento, já é de fato um novo modelo de História – uma história universal com sentido único, e que aponta escatologicamente para um futuro no qual se eternizarão a salvação ou a condenação – aquele que é introduzido por Santo Agostinho em Cidade de Deus, e que, passando na Idade Média por Gioachino da Fiore (1145-1202), chegará até o século XVII e a primeira metade do século XVIII com Bossuet (1681) e Lessing . Trata-se de um passo além do modelo hebreu, precisamente porque o modelo agostiniano refere-se a uma história de todo o gênero humano, e não mais a uma contraposição entre a história de um povo eleito e as histórias menores dos pagãos (BODEI, 2001, p.18). De resto, esta História – que Santo Agostinho concebe em seis etapas por paralelismo com o modelo da Criação do Mundo em seis dias – parece situar o Futuro de fato como um “outro mundo”, radicalmente distinto deste complexo de Presente-Passado que corresponde à aventura humana em direção à salvação ou à condenação. O Futuro corresponderá ao momento em que finalmente o tempo histórico poderá ser interrompido, tal como se interrompera o tempo da Criação naquele “sétimo dia” no qual Deus pudera finalmente descansar após o trabalho da Criação.
Poderemos tentar aqui uma síntese acerca dos principais traços do padrão de temporalidade proposto pelo modelo histórico-teológico do Cristianismo. O Tempo é linear e “teleológico”, isto é, possui um “telos”, um “fim” a ser atingido . Este tempo linear é enquadrado por duas datas: a da Criação e a do Juízo Final, e no seu decorrer é pontilhado por eventos que expressam a Vontade Deus. Já não importa tanto o número de etapas que constituem este percurso – as “seis idades do mundo” de Santo Agostinho ou as três épocas de Gioacchino da Fiore – mas sim o fato de que as diversas doutrinas das idades do mundo eram concebidas de tal modo que, depois do nascimento de Cristo, estava-se vivendo já a última delas, o que implicava que “desde então não poderia acontecer mais nada de novo, pois o mundo se encontrava sob a perspectiva do Juízo Final” (KOSELLECK, 2006, p.128).
A função dos eventos em tal estrutura de tempo é singular. Cada evento só adquire seu real sentido quando inserido e compreendido no interior desta sequência relacionada ao futuro teológico . Trata-se, de fato, de uma história “transcendente” – isto é, conduzida de fora pela vontade divina . No que concerne à Temporalidade – isto é, no que se refere à relação entre Passado, Presente e Futuro que se estabelece a partir da escatologia cristã – o Futuro constitui um outro mundo, distinto do Presente-Passado, embora este se conduza para aquele. Por fim, pode-se dizer que o tempo historiográfico do historiador-teólogo (isto é, o terceiro tempo que é produzido pela história-conhecimento de um ponto de vista teológico-cristão) é reconstituído a partir de diversas histórias, que ilustram os vícios e virtudes e esclarecem a vontade de Deus.
Posteriormente, e acompanhando a mesma linearidade e teleologia, os iluministas do século XVIII proporiam o seu ajuste: substituir pela “utopia sócio-política” a escatologia, substituir pelo “Reino da Razão” o Paraíso Prometido no final da linha, e introduzir no interior da linearidade teleológica, agora “imanente”, um Espírito Absoluto, ao invés do Deus transcendente que intervém na História através de revelações e milagres inscritos nos eventos.
Estes exemplos, por ora, valem-nos para ressaltar que a diversidade das idéias de tempo não se refere apenas aos pensadores das várias escolas filosóficas e historiográficas, mas também se refere ao confronto entre civilizações e culturas humanas diversificadas, ou mesmo entre formas distintas de religiosidade, como acrescenta Ernst Cassirer em seu ensaio A Filosofia das Formas Simbólicas, na parte em que desenvolve uma reflexão sobre “A configuração do tempo na consciência mítica e religiosa” . Eis aqui uma primeira História do conceito de Tempo a ser considerada.
Diga-se de passagem, e acompanhando as reflexões de Juliana Bastos Marques em seu artigo sobre “O Conceito de Temporalidade e sua aplicação na historiografia antiga”, a interação do conceito de Tempo com a História – hoje tão óbvia e irredutível – tem também a sua história própria, e é importante destacar que o conceito original de História, entre os gregos, não se baseava na reflexão sobre a natureza do tempo, uma vez que etimologicamente a palavra significaria “pesquisa, informação, relato” (MARQUES, 2006, p. 65). Ademais, tanto com Heródoto como com Tulcídides, o que se tem, para nos expressarmos com alguma liberdade, é o que equivaleria hoje a uma História do Tempo Presente (ou, ao menos, do tempo recente), de modo que não ocorre aqui, ainda, a preocupação com uma temporalidade mais extensa . O objetivo principal da História, conforme formulado por Heródoto, era evitar que fossem esquecidas “as grandes façanhas dos gregos e dos bárbaros”; tratava-se de preservar aquilo que merecia ser lembrado do destino comum a todas as coisas, que era ser levado pelas correntezas do Lethes, o “rio do esquecimento” . Deste modo, Heródoto, e ainda Tulcídides, estavam muito mais preocupados com o seu passado recente, de modo que a sua história não trabalha com a noção de tempo. Já posteriormente, com o desenvolvimento dos gêneros proto-historiográficos da cronologia e da genealogia, a noção de temporalidade adentra definitivamente, com importância definitiva, o conceito de História .
Já nos referindo à História plenamente envolvida pela interação com a noção de temporalidade, outra aporia fundamental para compreender a relação entre Tempo e História é aquela que confronta o ‘tempo da ação’ e o ‘tempo da narrativa’. Com o ‘tempo da ação’ estamos no universo que se refere aos “Fios” que enredam a própria história efetiva, e com o ‘tempo da narrativa’ estamos já no âmbito deste Tempo que é Trama, para tomar emprestado de Ivan Domingues esta feliz metáfora que ilumina este segundo Tempo que surge na operação historiográfica como construção ou artefato literário. Ou seja, considerando que o historiador extrai os seus materiais da História Efetiva, e os reordena para compor a sua História-Conhecimento, impõe-se aqui um incontornável confronto entre o ‘tempo dos eventos’ ou ‘tempo do vivido’, intrincado emaranhado de fios com o qual o historiador se depara, e o ‘tempo da narrativa’, com o qual o historiador terá de lidar já como autor que precisa configurar um texto historiográfico.
Leia também a continuação deste texto em:
https://www.researchgate.net/publication/321025262_Os_Tempos_da_Historia_do_tempo_mitico_as_representacoes_historiograficas_do_seculo_XIX
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BARROS, José D'Assunção "Os Tempos da História: do tempo mítico às representações historiográficas do século XIX". Revista Crítica Histórica. Ano 1, n°2. Alagoas: UFAL, 2010. p.180-208.
José D'Assunção Barros
E-mail: jose.d.assun@globomail.com
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