terça-feira, 31 de março de 2020

O Tempo (6). Concepções de Tempo na historiografia do século XX: A Contribuição dos Annales

Um dos grandes movimentos historiográficos do século XX, como se sabe, foi a constituído pela chamada Escola dos Annales, a qual teve grande repercussão no Brasil deixando um legado que até os dias de hoje influencia os nossos historiadores. As contribuições dos Annales foram muitas – indo desde o combate em favor da história-problema contra a história factual, até uma especial atenção às interdisciplinaridades. Neste artigo, desenvolveremos um conjunto de considerações sobre uma das contribuições que mais chamam atenção em historiadores dos Annales como Marc Bloch, Lucien Febvre, Fernand Braudel e outros: as novas formas de se relacionar com o tempo por eles propostas.
Quando falamos em novas possibilidades de relações entre os historiadores e o tempo, temos em vista aspectos que vão da percepção do tempo histórico às possibilidades de representá-lo, de utilizá-lo como aliado para produzir inovadoras leituras da história, pensar inusitados objetos e mobilizar novos tipos de fontes históricas. Essas novas possibilidades, evidentemente, não foram exclusivas dos historiadores dos Annales, constituindo desdobramentos para o qual contribuíram historiadores diversos ao longo de todo o século XX. Não obstante, com os Annales o trabalho mais sofisticado sobre o tempo histórico tornou-se um item central no programa desta escola.
Particularmente com Braudel e os annalistas que o seguiram em sua própria geração e na seguinte, iremos encontrar um novo modo de conceber e representar o tempo a partir da articulação entre dois conceitos importantes: o de ‘longa duração’ e o da ‘multiplicidade de tempos históricos’. Ao assimilar uma noção de ‘estrutura’ que já vinha encontrando seu desenvolvimento na Lingüística e na Antropologia da primeira metade do século XX, os annalistas inovam concebendo-a como movimento. De igual maneira, conceitos apenas aparentemente antagônicos como evento e estrutura encontram uma nova forma de articulação com a perspectiva da longa duração.
O olhar longo proporcionado pela longa duração é ainda revelador de aspectos que “só podem ser percebidas quando o recorte é bastante amplo, isto é, talhado ao fio dos séculos” (VOVELLE, 2011, p.376). De igual maneira, pensar a “longa duração” implica, como possibilidade, uma nova postura do historiador frente às fontes históricas. “Longa duração” e “série documental”, embora não constituam instâncias necessariamente interdependentes, apresentam-se como proposições complementares em muitos dos trabalhos dos novos historiadores que abraçaram a perspectiva da História Serial. No entender do Foucault de Arqueologia do Saber, a possibilidade de se estabelecer séries massivas de documentos, nas quais cada fonte deixa de ser isolada para passar a ser percebida em um conjunto mais amplo que se estende cronologicamente, foi mesmo o que habilitou historiador a atuar em um registro mais extenso, percebendo permanências e variações graduais. A “Longa Duração” deriva da “Série”, diz-nos o filósofo francês. Nada impede, por outro lado, que a série seja também empregada no estudo de processos de ritmo mais acelerado.


O conceito de longa duração

O grande desafio a ser enfrentado pelos historiadores dos Annales a partir de Fernand Braudel estava na necessidade de superar o paradoxo de conciliar o tempo da história – sem o qual esta não pode ser pensada como campo de saber – com a ‘estrutura’ atemporal que vinha sendo proposta por setores específicos da Antropologia, da Linguística e de outras ciências humanas. Em uma palavra, tratava-se de enquadrar a mudança histórica na estrutura da “longa duração”. Uma possibilidade de abordar a questão é a de considerar que, se no âmbito mais amplo da longa duração o tempo se apresenta estrutural, já no seu interior podem ocorrer mudanças a serem compreendidas pelo historiador. Fernando Braudel, em seu célebre artigo “A Longa Duração” (1958), evoca o exemplo da Economia:

A dificuldade, por um paradoxo apenas aparente, é vislumbrar a longa duração no campo em que a pesquisa histórica acaba de obter inegáveis sucessos: o campo econômico. Ciclos, inter ciclos, crises estruturais ocultam aqui as regularidades, as permanências de sistemas, ou de civilizações, como disseram alguns – isto é, velhos hábitos no que diz respeito ao modo de pensar e agir, condicionamentos resistentes, duros de mover, às vezes até mesmo contra toda alógica (BRAUDEL, 2011, p.96-97).

Conforme se vê, a perspectiva da longa duração deve vir acompanhada da percepção de que os ritmos dos diversos processos históricos não precisam necessariamente coincidir. O mundo agitado da política do dia-a-dia – ou, para dar um exemplo mais recente que Braudel não poderia ainda evocar em sua época, das inovações tecnológicas que se assomam desde as últimas décadas do século XX – pode contrastar com o ritmo lento das mentalidades, das relações mais amplas entre os homens e o espaço geográfico, das mudanças estruturais na língua através das quais os indivíduos se comunicam. Para as mudanças políticas, tornou-se célebre a metáfora braudeliana das “espumas” formadas nas cristas das grandes ondas históricas. A esta convivência entre distintos ritmos do tempo histórico – ou mais especificamente das diferentes durações – Fernando Braudel se referiu nos termos de uma “dialética das durações”. Um esquema visual pode nos facilitar a compreender a dialética das durações como uma espécie de arquitetura na qual a estrutura de ritmo mais longo (a longa duração) enquadra os ritmos de duração mais rápida.
Pensar a dialética das durações como arquitetura é apenas uma possibilidade. Obviamente que os diversos processos históricos não se ajustam uns aos outros como se fossem peças bem encaixadas em um esquema arquitetônico. De todo modo, a metáfora da arquitetura permite entender, ainda que de maneira simplória, a possibilidade de convivência e articulação dos diferentes ritmos históricos. Ao se mostrarem regidas por um tempo lento que determina seu alargado arco externo de permanências – e ao admitir dentro de si mesmas o contraponto de ritmos mais entrecortados – as estruturas reafirmam aqui a sua própria instância histórica, abaixo e acima de si, notando-se que uma estrutura poderia ser contraposta a outra em termos de alteridade (e não de continuidade). No interior de uma estrutura de longa duração, representada visualmente na parte superior do esquema, poderiam ser abordadas pelo historiador as média e curta duração (ou os tempos das conjunturas e dos eventos), de modo que o projeto braudeliano de durações enquadradas conseguiria estabelecer uma conciliação entre o tempo agitado da história política tradicional e o tempo imóvel das ciências sociais emergentes. A metáfora da arquitetura de durações é autorizada pelo próprio Fernand Braudel em sua busca de uma delimitação e elucidação do conceito de “estrutura”, tal como este poderia ser utilizado pelos historiadores:

Para nós, historiadores, uma estrutura é sem dúvida um agregado, uma arquitetura; porém, mais ainda, uma realidade que o tempo pouco deteriora e que veicula por um longo período. Certas estruturas, por perdurarem durante muito tempo, tornam-se elementos estáveis de uma infinidade de gerações: elas obstruem a história e, pelo fato de a incomodarem, impõem seu desabamento. Outras são mais propícias a se desestruturar. Mas todas são, ao mesmo tempo, sustentáculos e obstáculos. Com obstáculos, elas ficam marcadas como limites (contornos, no sentido matemático) dos quais o homem e suas experiências praticamente não podem se libertar. Pensem na dificuldade de quebrar algumas limitações geográficas, algumas realidades biológicas, alguns limites da produtividade e mesmo certos condicionamentos espirituais: os arcabouços mentais também são prisões de longa duração (Fernando Braudel, A História e as Ciências Sociais: a Longa Duração, 1958) [BRAUDEL, 2011, p.95].

Neste texto, Fernand Braudel menciona tanto a possibilidade de estruturas que apresentam fissuras entre si (as estruturas contras as quais “impõe-se o seu desabamento” para que outras possam surgir), como também a ocorrência de estruturas que deslizam lentamente até desaparecerem, ou até se transformarem em novas estruturas, com características distintas e novos padrões de coerência. De acordo com as próprias palavras de Braudel, temos aqui as estruturas que “são mais propícias a se desestruturar”. Em um caso, a passagem de uma estrutura a outra pode ser regida por mudanças ou declives abruptos, e certamente aqui podem ser incluídas as revoluções sociais, compreendidas como movimentos contra as estruturas que “obstruem a história”. Podemos agregar ainda o exemplo das revoluções tecnológicas, que em alguns casos constituem poderosos eventos capazes de desestruturar de assalto uma antiga estrutura. Basta pensar nos eventos tecnológicos que, nas últimas décadas, mudaram a face do mundo da comunicação humana através de uma irreversível revolução digital. Acontecimentos políticos de grande porte – como a desestruturação do socialismo real na antiga União Soviética e o desabamento do muro de Berlim entre as duas Alemanhas – podem também ser evocados como exemplos de eventos que proporcionaram a passagem de uma estrutura para outra. Neste caso, seria interessante discutir se acontecimentos como estes é que introduziram uma fissura na estrutura política anterior ou se, na verdade, foram resultados de longos e imperceptíveis processos sociais e políticos que já vinham acumulando tensões no interior da própria estrutura, até que estas se rupturas tornaram visíveis e irreparáveis através de um acontecimento emblemático e impactante.

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José D'Assunção Barros
E-mail: jose.d.assun@globomail.com

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