Um dos grandes movimentos
historiográficos do século XX, como se sabe, foi a constituído
pela chamada Escola dos Annales, a qual teve grande repercussão no
Brasil deixando um legado que até os dias de hoje influencia os
nossos historiadores. As contribuições dos Annales foram muitas –
indo desde o combate em favor da história-problema contra a história
factual, até uma especial atenção às interdisciplinaridades.
Neste artigo, desenvolveremos um conjunto de considerações sobre
uma das contribuições que mais chamam atenção em historiadores
dos Annales como Marc Bloch, Lucien Febvre, Fernand Braudel e outros:
as novas formas de se relacionar com o tempo por eles propostas.
Quando falamos em novas
possibilidades de relações entre os historiadores e o tempo, temos
em vista aspectos que vão da percepção do tempo histórico às
possibilidades de representá-lo, de utilizá-lo como aliado para
produzir inovadoras leituras da história, pensar inusitados objetos
e mobilizar novos tipos de fontes históricas. Essas novas
possibilidades, evidentemente, não foram exclusivas dos
historiadores dos Annales, constituindo desdobramentos para o qual
contribuíram historiadores diversos ao longo de todo o século XX.
Não obstante, com os Annales o trabalho mais sofisticado sobre o
tempo histórico tornou-se um item central no programa desta escola.
Particularmente com Braudel e
os annalistas que o seguiram em sua própria geração e na seguinte,
iremos encontrar um novo modo de conceber e representar o tempo a
partir da articulação entre dois conceitos importantes: o de ‘longa
duração’ e o da ‘multiplicidade de tempos históricos’. Ao
assimilar uma noção de ‘estrutura’ que já vinha encontrando
seu desenvolvimento na Lingüística e na Antropologia da primeira
metade do século XX, os annalistas inovam concebendo-a como
movimento. De igual maneira, conceitos apenas aparentemente
antagônicos como evento e estrutura encontram uma nova forma de
articulação com a perspectiva da longa duração.
O olhar longo proporcionado
pela longa duração é ainda revelador de aspectos que “só podem
ser percebidas quando o recorte é bastante amplo, isto é, talhado
ao fio dos séculos” (VOVELLE, 2011, p.376). De igual maneira,
pensar a “longa duração” implica, como possibilidade, uma nova
postura do historiador frente às fontes históricas. “Longa
duração” e “série documental”, embora não constituam
instâncias necessariamente interdependentes, apresentam-se como
proposições complementares em muitos dos trabalhos dos novos
historiadores que abraçaram a perspectiva da História Serial. No
entender do Foucault de Arqueologia do Saber, a possibilidade
de se estabelecer séries massivas de documentos, nas quais cada
fonte deixa de ser isolada para passar a ser percebida em um conjunto
mais amplo que se estende cronologicamente, foi mesmo o que habilitou
historiador a atuar em um registro mais extenso, percebendo
permanências e variações graduais. A “Longa Duração” deriva
da “Série”, diz-nos o filósofo francês. Nada impede, por outro
lado, que a série seja também empregada no estudo de processos de
ritmo mais acelerado.
O conceito de longa duração
O grande desafio a ser
enfrentado pelos historiadores dos Annales a partir de Fernand
Braudel estava na necessidade de superar o paradoxo de conciliar o
tempo da história – sem o qual esta não pode ser pensada como
campo de saber – com a ‘estrutura’ atemporal que vinha sendo
proposta por setores específicos da Antropologia, da Linguística e
de outras ciências humanas. Em uma palavra, tratava-se de enquadrar
a mudança histórica na estrutura da “longa duração”. Uma
possibilidade de abordar a questão é a de considerar que, se no
âmbito mais amplo da longa duração o tempo se apresenta
estrutural, já no seu interior podem ocorrer mudanças a serem
compreendidas pelo historiador. Fernando Braudel, em seu célebre
artigo “A Longa Duração” (1958), evoca o exemplo da Economia:
A dificuldade, por um paradoxo
apenas aparente, é vislumbrar a longa duração no campo em que a
pesquisa histórica acaba de obter inegáveis sucessos: o campo
econômico. Ciclos, inter ciclos, crises estruturais ocultam aqui as
regularidades, as permanências de sistemas, ou de civilizações,
como disseram alguns – isto é, velhos hábitos no que diz respeito
ao modo de pensar e agir, condicionamentos resistentes, duros de
mover, às vezes até mesmo contra toda alógica (BRAUDEL, 2011,
p.96-97).
Conforme se vê, a perspectiva
da longa duração deve vir acompanhada da percepção de que os
ritmos dos diversos processos históricos não precisam
necessariamente coincidir. O mundo agitado da política do dia-a-dia
– ou, para dar um exemplo mais recente que Braudel não poderia
ainda evocar em sua época, das inovações tecnológicas que se
assomam desde as últimas décadas do século XX – pode contrastar
com o ritmo lento das mentalidades, das relações mais amplas entre
os homens e o espaço geográfico, das mudanças estruturais na
língua através das quais os indivíduos se comunicam. Para as
mudanças políticas, tornou-se célebre a metáfora braudeliana das
“espumas” formadas nas cristas das grandes ondas históricas. A
esta convivência entre distintos ritmos do tempo histórico – ou
mais especificamente das diferentes durações – Fernando Braudel
se referiu nos termos de uma “dialética das durações”. Um
esquema visual pode nos facilitar a compreender a dialética das
durações como uma espécie de arquitetura na qual a estrutura de
ritmo mais longo (a longa duração) enquadra os ritmos de duração
mais rápida.
Pensar a dialética das
durações como arquitetura é apenas uma possibilidade. Obviamente
que os diversos processos históricos não se ajustam uns aos outros
como se fossem peças bem encaixadas em um esquema arquitetônico. De
todo modo, a metáfora da arquitetura permite entender, ainda que de
maneira simplória, a possibilidade de convivência e articulação
dos diferentes ritmos históricos. Ao se mostrarem regidas por um
tempo lento que determina seu alargado arco externo de permanências
– e ao admitir dentro de si mesmas o contraponto de ritmos mais
entrecortados – as estruturas reafirmam aqui a sua própria
instância histórica, abaixo e acima de si, notando-se que uma
estrutura poderia ser contraposta a outra em termos de alteridade (e
não de continuidade). No interior de uma estrutura de longa duração,
representada visualmente na parte superior do esquema, poderiam ser
abordadas pelo historiador as média e curta duração (ou os tempos
das conjunturas e dos eventos), de modo que o projeto braudeliano de
durações enquadradas conseguiria estabelecer uma conciliação
entre o tempo agitado da história política tradicional e o tempo
imóvel das ciências sociais emergentes. A metáfora da arquitetura
de durações é autorizada pelo próprio Fernand Braudel em sua
busca de uma delimitação e elucidação do conceito de “estrutura”,
tal como este poderia ser utilizado pelos historiadores:
Para
nós, historiadores, uma estrutura é sem dúvida um agregado, uma
arquitetura; porém, mais ainda, uma realidade que o tempo pouco
deteriora e que veicula por um longo período. Certas estruturas, por
perdurarem durante muito tempo, tornam-se elementos estáveis de uma
infinidade de gerações: elas obstruem a história e, pelo fato de a
incomodarem, impõem seu desabamento. Outras são mais propícias a
se desestruturar. Mas todas são, ao mesmo tempo, sustentáculos e
obstáculos. Com obstáculos, elas ficam marcadas como limites
(contornos,
no sentido matemático) dos quais o homem e suas experiências
praticamente não podem se libertar. Pensem na dificuldade de quebrar
algumas limitações geográficas, algumas realidades biológicas,
alguns limites da produtividade e mesmo certos condicionamentos
espirituais: os arcabouços mentais também são prisões de longa
duração (Fernando Braudel, A
História e as Ciências Sociais: a Longa Duração,
1958) [BRAUDEL, 2011, p.95].
Neste texto, Fernand Braudel
menciona tanto a possibilidade de estruturas que apresentam fissuras
entre si (as estruturas contras as quais “impõe-se o seu
desabamento” para que outras possam surgir), como também a
ocorrência de estruturas que deslizam lentamente até desaparecerem,
ou até se transformarem em novas estruturas, com características
distintas e novos padrões de coerência. De acordo com as próprias
palavras de Braudel, temos aqui as estruturas que “são mais
propícias a se desestruturar”. Em um caso, a passagem de uma
estrutura a outra pode ser regida por mudanças ou declives abruptos,
e certamente aqui podem ser incluídas as revoluções sociais,
compreendidas como movimentos contra as estruturas que “obstruem a
história”. Podemos agregar ainda o exemplo das revoluções
tecnológicas, que em alguns casos constituem poderosos eventos
capazes de desestruturar de assalto uma antiga estrutura. Basta
pensar nos eventos tecnológicos que, nas últimas décadas, mudaram
a face do mundo da comunicação humana através de uma irreversível
revolução digital. Acontecimentos políticos de grande porte –
como a desestruturação do socialismo real na antiga União
Soviética e o desabamento do muro de Berlim entre as duas Alemanhas
– podem também ser evocados como exemplos de eventos que
proporcionaram a passagem de uma estrutura para outra. Neste caso,
seria interessante discutir se acontecimentos como estes é que
introduziram uma fissura na estrutura política anterior ou se, na
verdade, foram resultados de longos e imperceptíveis processos
sociais e políticos que já vinham acumulando tensões no interior
da própria estrutura, até que estas se rupturas tornaram visíveis
e irreparáveis através de um acontecimento emblemático e
impactante.
Leia a continuação deste
texto em:
José D'Assunção Barros
E-mail: jose.d.assun@globomail.com
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