segunda-feira, 27 de abril de 2020

Extensão e Compreensão de um Conceito


Conceitos,conforme discorremos em texto anterior, são instrumentos teóricos fundamentais para os diversos campos de saber, inclusive a História. O presente texto avança mais um pouco no esclarecimento sobre como podemos usar conceitos nas ciências humanas, incluindo a historiografia, e sobre quais são as propriedades de um conceito. O texto foi extraído do livro "Os Conceitos - seus usos nas ciências humanas" [BARROS, José D'Assunção. Os Conceitos - seus usos nas ciências humanas. Petrópolis: Editora Vozes, 2015).

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Do ponto de vista filosófico, todo conceito possui duas dimensões a serem consideradas: a “extensão” e a “compreensão” (às vezes também chamada de “conteúdo”, ou mesmo de "intensão", no sentido de "intensividade"). Chama-se “extensão” de um conceito precisamente ao grau de sua abrangência a vários fenômenos e objetos (seu campo de aplicação, por assim dizer); e chama-se “compreensão” de um conceito ao esclarecimento das características que o constituem. À medida que um conceito adquire maior “extensão”, perde em “compreensão”. Para deixar mais clara esta relação, exemplificaremos com um caso específico.

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Quando se conceitua “revolução” como “qualquer movimento social que se produz de maneira violenta”, dá-se a este conceito uma ‘extensão’ muito grande, que passa a abranger diversos movimentos sociais mas que, em contrapartida, reduz a sua ‘compreensão’ a dois elementos apenas (“movimento social” e “violento”). Quando definimos “revolução” como um movimento social que se produz de modo violento, implicando em mudanças efetivas nas relações sociais entre os grupos envolvidos, acrescentamos-lhe um elemento de ‘compreensão’, mas diminuímos a sua extensão, já que proposto deste modo o conceito de “revolução” passa a abranger menos movimentos sociais (excluindo os que implicam em meras trocas de poder, mas sem produzir modificações reais na estrutura social, sem falar nas meras agitações sociais).



Hannah Arendt, no seu livro "Da Revolução" (1963), combina alguns elementos essenciais à ‘compreensão’ do seu conceito de “revolução”. Para a autora, em primeiro lugar o conceito moderno de revolução “está inextricavelmente ligado à noção de que o curso da História começa subitamente de um novo rumo, de que uma História inteiramente nova, uma História nunca antes narrada está para se desenrolar” (ARENDT, 1998: 23). Atores e espectadores dos movimentos revolucionários a partir do século XVIII, passariam a ter uma consciência ou uma convicção muito clara de que algo novo estava acontecendo. É esta consciência do novo, da ruptura com o anterior, o que a autora considera essencial no moderno conceito de “revolução”.

Com este elemento essencial incorporado à “compreensão” do que chama de moderno conceito de Revolução, Hannah Arendt separa as autênticas revoluções, posteriores aos dois marcos modernos das revoluções ‘francesa’ e ‘americana’, de insurreições ou revoluções no sentido antigo, onde os homens pensavam nos seus movimentos políticos como restauradores de uma ordem natural que havia sido interrompida, e não como algo que visava à instituição do “novo” . Percebe-se que esta ampliação da ‘compreensão’ do conceito de “revolução” produziu, inversamente, uma restrição da ‘extensão’ deste conceito, que assa a excluir uma série de movimentos sociais da designação proposta.

Prosseguindo na ampliação da ‘compreensão’ do seu conceito de “revolução”, Arendt acrescenta que esta sempre envolve o desejo de obtenção da “liberdade”, noção incorporada dentro da definição de revolução e que a autora distingue muito claramente da noção de “libertação”. Enquanto a “liberdade” é conceituada em torno de uma opção política de vida (implicando em participação das coisas públicas, ou em admissão ao mundo político), a “libertação” implica meramente na idéia de ser livre da opressão (por exemplo, quando se livra um povo de uma tirania intolerável, mas sem modificar-lhe fundamentalmente as condições políticas). Assim, embora a “libertação” possa ser a condição prévia de “liberdade”, não conduziria necessariamente a ela. A noção moderna de “liberdade”, pensada como direito inalienável do homem, diferia inclusive da antiga noção de “liberdade” proposta pelo mundo antigo, relativa “à gama mais ou menos livre de atividades não-políticas que um determinado corpo político permite e garante àqueles que o constituem”.

Podemos ver, assim, que o conceito de revolução proposto por Hannah Arendt combina dois elementos essenciais, para além da mera mudança política matizada pela violência social, e mesmo da modificação na estrutura social. Devem estar presentes necessariamente a idéia de “liberdade”, na moderna acepção já discutida, e a convicção dos próprios atores sociais de que o ato revolucionário instaura um “novo começo”. Ampliada a ‘compreensão’ do conceito para esta combinação de elementos (mudança política, violência, transformação social efetiva, liberdade política, convicção de um “novo começo”), a ‘extensão’ de Revolução passa a enquadrar muito menos situações, excluindo uma série de movimentos políticos e sociais aos quais Hannah Arendt assim se refere:


“Todos esses fenômenos têm em comum com a revolução o fato de que foram concretizados através da violência, e essa é a razão pela qual eles são, com tanta freqüência, confundidos com ela. Mas a violência não é mais adequada para descrever o fenômeno das revoluções do que a mudança; somente onde ocorrer mudança, no sentido de um novo princípio, onde a violência for utilizada para constituir uma forma de governo completamente diferente, para dar origem à formação de um novo corpo político, onde a libertação da opressão almeje, pelo menos, a constituição da liberdade, é que podemos falar de revolução” (ARENDT, 1998: 28)






Percebe-se, através do exemplo atrás discutido, que a conceituação científica deve ser muito mais rica e precisa do que a conceituação cotidiana. O conceito de “revolução” proposto por Hannah Arendt mostra-se muito mais enriquecido, ao propor uma ampliação da sua ‘compreensão’ e uma redução da sua ‘extensão’, do que o conceito banalizado proposto por um dicionário comum.

Assim, na edição de bolso do Dicionário Aurélio (FERREIRA, 1975) – um dicionário muito utilizado no Brasil pelo grande público – pode-se ler no verbete “revolução” que esta é uma “rebelião armada; revolta; sublevação”. Um tal conceito, com tamanha redução da sua ‘compreensão’, mostra-se extensivo a um tal número de movimentos sociais, ou mesmo de golpes de Estado, ações criminosas e privadas, insurreições espontâneas e badernas, que muito pouco se poderia fazer com ele em termos de precisão sociológica e historiográfica . Foi com uma ‘compreensão’ assim reduzida do conceito de “revolução” que a Ditadura Militar de 1964, no Brasil, procurou afastar de si o estigma de que ali se tinha nada mais nada menos do que um articulado “golpe militar” direcionado para a conservação de antigos privilégios e para o abortamento de um movimento social e de consciência política que começava a se fortalecer.

Admitidas estas características, o Golpe de 1964 encaixa-se mais na noção de “contra-revolução”, ou pelo menos de “golpe de Estado”, do qualquer outra coisa .

Outro aspecto que podemos perceber a partir do exemplo de Hannah Arendt é que, conforme já havíamos mencionado anteriormente, a elaboração de uma definição de conceito pode gerar a necessidade da especificação de novos conceitos, ou requerer novas definições como desdobramentos. Assim, uma vez que a autora inclui como elemento inerente ao conceito de “revolução” a idéia de “liberdade”, preocupa-se em definir com muita precisão o que está entendendo por “liberdade”, já que não se trata aqui da noção vulgar de liberdade. Deste modo, opõe este conceito ao de “libertação”, também definido com precisão, além de apresentá-los dentro de um percurso histórico onde se examina a passagem da antiga noção de liberdade a uma noção já moderna. Também não faltam as referências teóricas e históricas pontuando um e outro caso.

Para confirmar ainda uma vez a diferença de qualidade entre a conceituação científica e a conceituação vulgar, basta comparar o conceito altamente elaborado de “liberdade política” em Hannah Arendt com a noção de “liberdade” que aparece registrada na versão de bolso do Dicionário Aurélio:


“liberdade. 1. Faculdade de cada um se decidir ou agir segundo a própria determinação. / 2 . Estado ou condição do homem livre” (FERREIRA, 1975)


Já nem será necessário lembrar que na definição ‘2’ o Dicionário comete a inadequação lógica de definir uma palavra por ela mesma, dizendo que “liberdade é o estado ou condição do homem livre” (definição que não acrescenta nada), e que na definição ‘1’ (“faculdade de cada um se decidir ou agir segundo a sua própria determinação”) uma mesma seqüência de palavras poderia se adaptar à idéia de “tirania” enquanto modo de governar (o tirano também “age e decide segundo a sua própria determinação”, particularmente sem consultar bases políticas e sociais).

Assim, para tornar a segunda definição de liberdade mais científica (já que a primeira não tem salvação), seria necessário acrescentar mais elementos, ampliando a sua compreensão e diminuindo a sua extensão. Está bem, “liberdade é a faculdade de cada um se decidir ou agir segundo a sua própria determinação”; mas com respeito a que tipo de ações, observando que tipos de limites no que se refere ao confronto com a liberdade do outro? Fazendo acompanhar as decisões e ações de que tipo de consciência? Não seria necessário nuançar também este último aspecto para distinguir o homem livre do homem louco (que por vezes tem a sua liberdade encerrada dentro das paredes de um hospício exatamente porque “decide e age segundo a sua própria determinação”)? Ou seria o caso de dizer que “a liberdade é a faculdade socialmente restringida de decidir ou agir segundo a sua própria determinação”? Como se vê, para tornar um conceito utilizável em um trabalho científico, é preciso lhe dar um tratamento mais elaborado.

Ainda com relação ao esforço de elaborar a “compreensão” de um conceito, deve se destacar que um conceito mais amplo pode ir sendo desdobrado em sucessivas divisões conceituais. Assim, retomando o conceito mais amplo de “revolução”, delineado de acordo com a ‘compreensão’ proposta por Hannah Arendt, poderia ser o caso de se construir uma nova divisão conceitual, que cindisse a classe maior das revoluções em “revoluções burguesas” e “revoluções socialistas”.

Por um lado todas as revoluções (de acordo com Arendt) possuem em comum certas características – como a mudança política brusca e violenta, a consecução ou o projeto de uma transformação social efetiva, a presença da idéia de “liberdade política” para além da mera “libertação”, e a convicção de um “novo começo” por parte dos atores sociais. Este conjunto de atributos independe de estas revoluções serem “revoluções burguesas” ou “revoluções socialistas”.

Por outro lado, no que se refere à participação ou ao tipo de participação de determinados atores ou classes sociais no processo de luta, e também ao seu resultado ou intenções em termos da organização social alcançada ou a alcançar, podem começar a ser entrevistas as diferenças entre as “revoluções burguesas” (conduzidas pelas classes enquadradas dentro da burguesia e almejando uma sociedade fundada na propriedade privada individual e na expansão capitalista) e as “revoluções socialistas”, conduzidas por lideranças operárias ou camponesas e motivadas pela possibilidade da dissolução das formas de propriedade típicas da sociedade burguesa (isto é, considerando-se a conceituação de “revolução socialista” habitualmente proposta pelo marxismo).

Seria possível continuar conduzindo desdobramentos conceituais como estes. Cindir, por exemplo, a classificação das “revoluções socialistas” entre aquelas que tiveram uma participação mais ativa do proletariado (como a Revolução Russa) e as que tiveram uma participação mais ativa do campesinato (como a Revolução Chinesa). Estaríamos deste modo elaborando ‘compreensões’ mais amplas e ‘extensões’ mais restritas que se desdobrariam nos novos conceitos de “revolução socialista proletária” e “revolução socialista camponesa”. Cada um destes desdobramentos conceituais passa a se restringir a um número menor de casos que, em contrapartida, seriam compreendidos de maneira mais rica. Mas chega um momento em que a operação de ampliar a ‘compreensão’ de um conceito e de reduzir a sua ‘extensão’, ou de desdobrar um conceito mais amplo em novas subdivisões conceituais, atinge os seus limites. Saímos do plano generalizador de “revolução”, para entrar no plano particularizador de cada revolução específica. Se a Revolução Chinesa e a Revolução Albanesa podem ser caracterizadas como “revoluções socialistas camponesas”, o evento da “Grande Marcha” foi uma especificidade histórica da Revolução Chinesa. Descrever os vários processos e eventos inerentes a este acontecimento único e irrepetível que foi a Revolução Chinesa já não é mais da esfera da conceituação. Não se pode conceituar a Revolução Chinesa; pode-se enumerar as suas características, descrever aspectos essenciais do seu desenrolar histórico, e assim por diante. Descrições e definições não-conceituais também são necessárias aos estudos históricos e sociológicos, mas são de outra natureza que não a das operações da conceitualização.

Cumpre extrair um ensinamento do exemplo acima. A definição proposta para um conceito não deve ser nem excessivamente ampla, nem demasiado estreita, existindo uma medida mais ou menos adequada que o autor deve se esforçar por atingir. Definir “revolução” de maneira exageradamente ampla, fazendo-a significar “qualquer movimento social armado”, seria tão problemático quanto definir “revolução” de maneira extremamente estreita, a tal ponto que dentro desta designação só coubesse um único exemplo histórico de revolução. Tais procedimentos são inúteis do ponto de vista científico.

Um exemplo aparentemente mais simples poderá iluminar a questão. “Homem” não pode ser definido simplesmente como um “mamífero bípede”, já que existem inúmeros outros animais que são mamíferos bípedes mas que não são homens; também não pode ser definido como “um animal que habita cidades construídas por ele mesmo”, já que existem homens que vivem no campo e não em cidades, sem falar nas sociedades humanas que não investiram na urbanização (como os povos indígenas brasileiros ou os aborígenes australianos). Neste último caso a ‘expressão definidora’ foi demasiado estreita (mais estreita que a essência do ‘termo a definir’) incluindo uma característica que não é essencial ao gênero humano, mas apenas eventual (a urbanidade). Já no primeiro caso a ‘expressão definidora’ foi mais ampla do que a essência do ‘termo a definir’, mencionando apenas uma combinação de duas características que não pertence exclusivamente ao gênero “homem” (mamífero bípede).

Quem sabe se a definição do “homem” como “construtor de cidades” não poderia ser melhorada dando-se uma maior extensão ao aspecto 'faber ' (construtor) registrado na ‘expressão definidora’ proposta? O homem seria então definido como “um animal que constrói” (não apenas cidades, mas também ocas como os indígenas, e também ferramentas, armas, utensílios). Em duas palavras, mais do que "homo sapiens" (homem que sabe), o Homem poderia ser definido como "homo faber" (homem que faz). Na mesma linha, poderia se tentar uma definição adaptada daquela que foi proposta por Marx e Engels “o homem é o único animal capaz de produzir as suas próprias condições de existência” (Marx e Engels, "A Ideologia Alemã").

Esta Definição, se por um lado registra a inserção do homem no mundo animal, por outro lado o diferencia como animal capaz produzir inventivamente as suas próprias condições de vida, interferindo na natureza. Mas então sempre surgiria alguém para dizer que o pássaro joão-de-barro também constrói o seu ninho, ou um castor a sua represa, de modo que seria preciso acrescentar que o homem produz os seus meios de vida transformando os materiais que a natureza oferece, e não apenas coletando-os . Estes tateamentos em busca de uma definição mais ajustada mostram as imprecisões que os estudiosos devem enfrentar diante da aventura de conceituar e de definir.

Uma lição, ainda, pode ser colhida dos exemplos até aqui discutidos: nenhum conceito é definitivo, sendo sempre possível redefini-lo. Se Hannah Arendt definiu “revolução” a partir do seu caráter originário de movimento social, operando sucessivos recortes na sua extensão, o mesmo conceito pode adquirir um enfoque bem diferente, mas igualmente válido, como aquele proposto por Krzystof Pomian:


“Efetivamente, qualquer revolução não é mais que a perturbação de uma estrutura e o advento de uma nova estrutura. Considerada neste sentido, a palavra ‘revolução’ perde o seu halo ideológico. Já não designa uma transformação global da sociedade, uma espécie de renovação geral que relega para a sua insignificância toda a história precedente, uma espécie de ano zero a partir do qual o mundo passa a ser radicalmente diferente do que era. Uma revolução já não é concebida como uma mutação, se não violenta e espetacular, pelo menos dramática; ela é, muitas vezes, silenciosa e imperceptível, mesmo para aqueles que a fazem; é o caso da revolução agrícola ou da revolução demográfica. Nem sequer é sempre muito rápida, acontece que se alongue por vários séculos. Assim (como o demonstram François Furet e Mona Ozouf), uma estrutura cultural caracterizada pela alfabetização irrestrita foi substituída por outra, a da alfabetização generalizada, no decurso de um processo que, em França, durou cerca de trezentos anos” (POMIAN, 1990: 206)


“Revolução”, segundo a ‘compreensão’ proposta por Pomian, já não é necessariamente uma mudança brusca (“acontece que se alongue por vários séculos”) ou sequer violenta (“ela é muitas vezes silenciosa e imperceptível”). Tampouco é concebida como um novo começo (“essa espécie de ano zero a partir do qual o mundo passa a ser radicalmente diferente do que era”). Por outro lado, implica necessariamente na passagem de uma “estrutura” a outra. Desta forma, associada ao conceito de “estrutura” tal foi como proposto pelos historiadores dos Annales, “revolução” passa a ter a sua ‘extensão’ aplicável a uma série de outros fenômenos para além dos movimentos políticos, como a “revolução agrícola” ou a “revolução demográfica”.

Pode-se dar que o polissemismo possível de um conceito esteja presente em um mesmo autor, mas referindo-se a situações diversas. Em Marx e Engels, por exemplo, ocorre que às vezes – como em A Ideologia Alemã – a expressão “revolução” apareça relacionada com o salto de um modo de produção para o seguinte . Neste sentido, portanto, também pode incorporar fenômenos como a “revolução agrícola” ou a “revolução urbana”, de maneira similar ao enfoque de Pomian. Mas Marx e Engels também empregam a expressão “revolução” no seu sentido mais propriamente político, referindo-se especificamente a movimentos sociais – o que implica em um enfoque mais próximo do proposto por Hannah Arendt, embora bem mais flexível (ou “extenso”).

É preciso notar, ainda, que dois autores podem elaborar um conceito a partir de uma ‘compreensão’ idêntica ou muito próxima, e no entanto diferirem na sua concepção concernente à ‘extensão’ deste conceito, no que se refere a quais os casos observáveis que se enquadrariam neste conceito. Assim, Gianfranco Pasquino, encarregado de compor o verbete “revolução” para o Dicionário de Política coordenado por Norbert Bobbio (PASQUINO, 2000: 1121), não deixa de chegar a uma ‘compreensão’ deste conceito bastante compatível com a de Hannah Arendt, uma vez que nela combina os aspectos da violência, da intenção de promover efetivamente mudanças profundas nas relações sociais, além do aspecto relativo ao sentimento do novo . No entanto, no exame dos casos empíricos – isto é, na avaliação de que processos históricos se enquadrariam na categoria “revolução” – discorda da afirmação de que a Revolução Americana tenha sido efetivamente uma Revolução, preferindo enxergá-la como uma “sub-espécie da guerra de libertação nacional” . Por outro lado, já admite que a Revolução Francesa teria introduzido uma mudança no conceito de “revolução”, passando-se à fé na possibilidade da criação de uma ordem nova. Assim, apesar de uma ‘compreensão’ relativamente próxima ou compatível de um mesmo conceito, os dois autores divergem no que se refere ao ajuste dos casos concretos à ‘extensão’ atribuída a este conceito.

Estes exemplos, entre tantos outros que poderiam ser relacionados, são suficientes para mostrar que, ao procurar precisar os conceitos que irá utilizar, o estudioso pode ter diante de si uma gama relativamente ampla de alternativas. É esta variedade de possibilidades – verdadeira luta de sentidos diversos que se estabelece no interior de uma única palavra – o que torna desejável uma delimitação bastante clara do uso ou dos usos que o autor pretende atribuir a uma determinada expressão-chave de seu trabalho.



José D'Assunção Barros
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Para ler uma discussão mais aprofundada sobre o conceito de "revolução", ver o artigo Revolução - variações em torno de um acorde conceitual
Para ler uma obra de profundidade sobre 'Os Conceitos - seus usos nas ciências humanas', ver o livro com este título que foi publicado pela Editora Vozes (BARROS, 2015)


domingo, 19 de abril de 2020

CONCEITOS - uma introdução ao seu uso nas ciências humanas

Para que servem os conceitos


Os conceitos são familiares, e necessários, a qualquer campo de saber. Também os encontramos na própria vida comum – na qual lidamos cotidianamente com conceitos mesmo que sem termos plena consciência disso, e em diversos outros campos de atividades humanas, como os vários campos profissionais, áreas de atividades diversificadas como o esporte e o entretenimento, ou ainda em campos como os da política, religião e arte. Um lutador de judô, por exemplo, precisa criar conceitos para lidar com as diversas formas de luta que sua arte marcial oferece, assim como para repertoriar os golpes e imobilizações que terão a sua funcionalidade no judô. Um músico, para criar suas composições e performatizá-las, terá de lidar com conceitos já seculares, como os de ‘acorde’, ‘harmonia’ ou ‘polifonia’. Uma religião precisará dos conceitos para pensar, invocar ou compreender as suas figuras de mediação entre este e o outro mundo, sejam estes anjos, demônios, espíritos ou orixás. Os políticos precisam dos conceitos para pensar o mundo político nas suas diferentes possibilidades, e também para se comunicarem uns com os outros. Os conceitos, já veremos porque, são imprescindíveis nas mais distintas áreas da ação e criação humana, como está esquematizado no ‘Quadro 1’.


Quadro 1: Lugares e ambientes que produzem conceitos.


Na Ciência, entrementes, os conceitos são fundamentais e realmente imprescindíveis. São eles que permitem a organização de qualquer saber, as reflexões mais aprofundadas que são exigidas de todo campo científico, e a própria possibilidade de comunicação entre os cientistas. De fato, os conceitos funcionam, por um lado, como ‘unidades de conhecimento’; e ao mesmo tempo constituem ‘unidades de conhecimento’. Esta dupla finalidade dos conceitos espelha-se nas seis funções básicas que estão expostas no ‘Quadro 2’.


Quadro 2: Para que servem os conceitos?


A primeira destas funções é a de ‘organizar’ a realidade ou certo aspecto da realidade, que de outra forma seria percebida caoticamente pelos seres humanos. Se ao olharmos para o céu não dispuséssemos de conceitos como os de ‘planeta’, ‘estrela’, ‘meteoro’, ‘cometa’ – os quais permitem classificar, comparar e contrastar os distintos corpos celestes – e se não pudéssemos pensar em conceitos como os de ‘rotação’, ‘gravitação’, translação’, que possibilitam a compreensão das relações que os corpos celestes estabelecem entre si, a realidade celeste nos pareceria caótica e não poderia ter se desenvolvido uma ciência como a da Astronomia, capaz de fazer previsões de todos os tipos e de vasculhar o imenso espaço sideral apenas através da observação, do cálculo e de outros tipos de procedimentos intermediados pelos conceitos e por instrumentos inventados para finalidades diversas. Uma teoria amparada por conceitos apropriados, e uma metodologia constituída a partir dos procedimentos adequados a cada caso, constituem a base do conhecimento científico em qualquer um dos campos de saber configurados como ciências.
Da mesma forma que o céu nos pareceria caótico se não tivéssemos conceitos para organizá-lo mentalmente, também teríamos um passado humano a princípio caótico se os historiadores não dispusessem de diferentes conceitos para compreender, por exemplo, as variadas formas de governo que já foram desenvolvidas pela humanidade – como a ‘democracia’, a ‘tirania’, a ‘monarquia’ e tantas outras – ou para apreender os diferentes tipos de violência coletiva que ocorrem nas relações entre as sociedades, tais como a ‘guerra’, as ‘revoluções’, os ‘golpes de estado’, o ‘banditismo’. Assim como os astrônomos precisam dos conceitos para organizar o "céu", os historiadores também precisam dos conceitos para organizar a imensa variedade de fenômenos que ocorreram ao longo da vida humana em toda a história. Se olhássemos para o passado sem conceitos que o pudessem organizar, nada veríamos senão caos: os diferentes tipos de violência que ocorreram e que ocorrem nos dias de hoje pareceriam apenas violência disforme, e não compreenderíamos que podemos estar diante de fenômenos tão distintos como as guerras, revoluções, insurreições, revoltas, motins, bandistismo, criminalidade. Cada um deste fenômenos, para ser compreendido em nível de maior profundidade, precisa de um conceito que o especifique mais, que o defina, que esclareça as suas implicações e campos de aplicação. Depois que formulamos um conceito como estes, podemos tentar agrupar os fenômenos onde a violência desempenha um papel similar e que apresentam certas características em comum - como as "guerras" - para contrastá-los com outros bem diferentes, como as "revoluções".




Diferença entre os conceitos e as palavras comuns


Quando pensamos em ‘conceitos’, um primeiro aspecto a se considerar é possível distinção entre os ‘conceitos’ propriamente ditos e as ‘palavras comuns’. Ninguém estranharia, a princípio, se disséssemos que ‘ideologia’ e ‘classe social’ são conceitos importantes nas áreas de História e Sociologia, e que ‘gravitação’ e ‘número primo’ são conceitos importantes na Física e na Matemática, respectivamente. Posso também recolher um certo conjunto de palavras, aleatoriamente escolhidas, e postular que são palavras comuns, como mostra o ‘quadro 10’.
‘Desastre’, ‘tentativa’, ‘pedra’, ‘copo’, ‘aflição’ são palavras que empregamos em nosso dia-a-dia, o que também não impede que empreguemos cotidianamente – inclusive como ‘palavras comuns’ – algumas das palavras que situamos acima, como ‘classe social’.  A rigor, como veremos, não existem palavras que são sempre conceitos, e palavras que são sempre ‘palavras comuns’ – embora isso também possa ocorrer com certas interjeições como “oh”, ou com os diversos nomes que são dados aos habitantes de qualquer sociedade. Muitas vezes, entretanto, as palavras oscilam entre um uso comum e um uso conceitual. Devemos entender, antes de mais nada, o que é esse ‘uso conceitual’ de uma palavra.
Já mostramos, na primeira seção deste texto, que os conceitos têm dois papéis importantes na produção de conhecimento científico, ou mesmo no interior de comunidades relacionadas a práticas diversificadas, como os esportes, o trabalho, as religiões ou a política. Além de funcionarem como importantes 'unidades de comunicação', os conceitos funcionam como ‘unidades de conhecimento’ porque através deles podemos estender um olhar mais preciso, aprofundado e sofisticado sobre aspectos de uma certa realidade no interior de certo campo de pensamento ou de práticas específicas. Como ‘unidades de conhecimento’, os conceitos servem para ‘organizar’ a realidade à nossa volta, em maior nível de complexidade. Servem também para, em um determinado campo de saber, por exemplo, ‘comparar’ diferentes objetos, identificando propriedades em comum e, nesta operação, agrupando uns por oposição a outros que com eles contrastam. Os conceitos, como vimos, estabelecem generalizações.
É claro que as palavras comuns também podem ajudar a organizar a realidade no seio da nossa vida cotidiana, e de fato fazem isso. Mas os conceitos, no interior de certo campo de saber, fazem isso tanto agregando um olhar de profundidade como instituindo um processo de comunicação importante entre os praticantes de determinado campo de saber. É por isso, aliás, que dissemos que os conceitos, além de serem ‘unidades de conhecimento’, são também ‘unidades de comunicação’. Os cientistas lidam com os conceitos de um modo específico: eles os discutem sempre, reatualizam seus usos, aprimoram suas possibilidades de aplicação, fazem ajustes na sua definição – podem discuti-los em longas sessões de congressos científicos. Na sua vida diária, um cientista usa palavras comuns, como todos os seres humanos. Mas na prática do seu saber, eles pensam e se comunicam através de conceitos (além de, é claro, continuarem a usar palavras comuns). Os conceitos, nestas situações, tornam-se palavras que adquirem certo destaque no interior de cada campo de saber que precisa deles tanto para uma análise mais objetiva da realidade como para uma comunicação mais sofisticada entre os praticantes de um campo. O que estamos falando aqui é válido para outros campos além da ciência, como as artes, a política, o sistema jurídico, a prática de esportes, a religião, e diversos outros. Mas vamos nos ater mais especificamente ao caso das diversas ciências.
Os conceitos são objeto de discussão permanente entre os cientistas. Se apenas utilizamos as palavras comuns nas nossas atividades diárias, uma vez que elas só precisam atender a um processo comunicativo mais superficial, já os conceitos precisam ser discutidos e definidos a cada momento que os utilizamos com finalidades científicas. Determinados campos de saber podem utilizar consensualmente certos conceitos durante muito tempo, mas a possibilidade de sua discussão está sempre em pauta, mesmo porque a ciência vê a si mesma como um campo de saber falível, que precisa ser aprimorado constantemente, propondo novas leituras da realidade que não raramente substituem outras, ou então as aperfeiçoam. Por isso os conceitos basilares de cada ciência, e também os conceitos mais específicos relacionados à diversidade dos seus objetos de estudo, estão sempre em pauta, como palavras especiais que permitem ver as coisas de uma certa maneira. Os conceitos, neste sentido, são instrumentos da teoria.
Oportunamente, veremos que elaborar conceitos – em contraste com a simples menção de uma ‘palavra comum’ – implica agregar a este conceito uma definição constituída de diversos elementos mínimos que lhe trazem clareza e precisão (a chamada ‘compreensão’ do conceito), e também implica considerar os objetos e situações às quais o conceito se aplica (a ‘extensão’ do conceito). Por ora, quero destacar que, se não costumamos pensar isso para as palavras comuns que empregamos no dia-a-dia, já para os conceitos, em ambiente científico, esta operação está sempre implícita. Deste modo, a prática científica vai deixando muito clara a distinção entre os conceitos e as meras palavras comuns (em referência a este ou àquele campo específico). No entanto, é preciso considerar que algumas palavras podem oscilar perfeitamente entre o seu uso comum e o seu uso conceitual. Uma palavra que habitualmente é vista como ‘conceito’ em determinado campo de saber, em outro pode só aparecer como uma ‘palavra comum’. Além disso, um mesmo conceito – ou uma mesma palavra que designa um conceito – pode se abrir a determinados sentidos e significados em um campo de saber, e a outros sentidos e significados em outro. Uma definição válida para um conceito em certo campo de saber pode não ter nenhuma operacionalização em outro campo.
Vamos ilustrar essa situação com a palavra “angústia”, que frequentemente utilizamos como palavra comum em nosso dia-a-dia, mas que pode se apresentar como expressão verbal associada a diferentes conceitos em determinados campos de saber. Por isso, trouxe a palavra para meio caminho entre a área dos conceitos e a área das palavras comuns, no quadro anterior, mesmo que esta palavra na maior parte do tempo esteja imersa na dinâmica de palavras comuns com as quais nos comunicamos uns com os outros todo o tempo. Neste novo momento, vamos nos aproximar da palavra ‘angústia’, de modo a refletir sobre as suas potencialidades como palavra comum e como conceito.
Na vida comum, quando empregamos a palavra ‘angústia’ estamos nos referir a uma ansiedade negativa, difícil de definir, e geralmente ocasionada por algum fator ou combinação de fatores na vida do indivíduo angustiado. Todos nós sentimos ‘angústia’ diante de determinadas situações, em maior ou menor grau, e por menor ou maior período de tempo. Ao nos comunicarmos com outros indivíduos e dizermos que estamos angustiados com relação a determinada questão, ou mesmo que estamos sofrendo de angústia de modo mais geral, não precisamos dar maiores explicações acerca do sentido que estamos atribuindo à palavra angústia. A compreensão desta palavra é mais ou menos imediata por qualquer pessoa comum, e particularmente no sentido comum como definimos a palavra no início deste parágrafo. Contudo, se a angústia está provocando muito desconforto e sofrimento, pode ser que tomemos a decisão de recorrer a um psicólogo.
Para a Psicologia, ‘angústia’ é um conceito importante, pois pode se referir a uma doença ou distúrbio que requeira tratamento ou maiores cuidados. Os psicólogos discutem o conceito de angústia em seus congressos, e operam com os seus sentidos mais precisos em sua prática clínica diária. A angústia, para eles, pode ser entendida como um sentimento negativo de ansiedade e desconforto que pode provocar sensações físicas e psicológicas, bem como danos graves ao indivíduo. Ao discutir a angústia, os psicólogos provavelmente darão um uso conceitual clínico a esta palavra. Há tratados de psicologia sobre a angústia e sobre as diferentes formas de tratá-la. Os pesquisadores da área também produziram teses, ensaios, conferências, documentos, estatísticas e trabalhos analíticos sobre esta disposição mental, e em cada um destes diferentes tipos de textos precisarão trabalhar conceitualmente com a expressão verbal ‘angústia’. Para eles, neste momento, não teremos aqui mais uma palavra comum, mas sim um conceito.
Passando da Psicologia à Filosofia, podemos encontrar outros desenvolvimentos conceituais aplicáveis à ideia de angústia. Na filosofia existencialista e pré-existencialista, em suas diversas correntes e contribuições autorais, ‘angústia’ torna-se um conceito central. O próprio ser humano, nesta nova perspectiva filosófica, passa a ser visto como o único animal que tem a sua vida permanentemente interferida e redefinida pela angústia. Neste sentido, a capacidade de se angustiar (ou a incapacidade de não se angustiar) pode ser mesmo pensada como uma nota significativa que se acrescenta ao acorde conceitual que define a espécie humana e amplia a distinção desta em relação a outras espécies animais. De todo modo, o que importa para a nossa presente discussão é dar a perceber que – para filósofos existencialistas como Jean-Paul Sartre (1905-1980) e filósofos precursores desta corrente como Kierkegaard (1813-1855) – a angústia também não pode mais ser utilizada como uma palavra comum, devendo, sim, ser operacionalizada como um conceito.
Qual é a principal angústia dos seres humanos? Isso vai variar de filósofo a filósofo no ambiente existencialista, mas todos concordam a angústia seria central para definir as condições e características essenciais da existência humana. Para Sartre, por exemplo, a angústia central é a ‘liberdade’, outra palavra que frequentemente empregamos de forma comum em nossas conversas cotidianas, mas que nas discussões filosóficas inspiradas em Sartre também assume o status e funcionalidade de um conceito.
É bem conhecida a célebre frase proferida por Sartre: “o homem está condenado a ser livre”. Esta frase, não raramente, é muito usada de maneira descaracterizada, deslocada de suas conotações existencialistas, para significar poeticamente que “o homem está destinado à liberdade”. Ou seja, nessa interpretação comum (e desvirtuada) da frase sartreana, a liberdade é abordada em seu aspecto positivo e a expressão “está condenada” é desvinculada de suas implicações filosóficas para assumir um matiz poético, como se quiséssemos dizer que, não importa as tiranias que se abatam sobre a humanidade, nada pode impedir a liberdade que está destinada à espécie humana. A frase de Sartre, em seu contexto original, não trata, todavia, disto.
O que ocorre é que o conceito de “liberdade”, na filosofia existencialista de Sartre, conecta-se com o conceito de “angústia”, central na postura existencialista. A liberdade faz parte da condição humana através de um viés angustiante: diante de qualquer situação, das mais simples às mais decisivas, os seres humanos não apenas tem direito a fazer escolhas – eles são obrigados a fazer escolhas. A todo instante de suas vidas, os seres humanos tem a ‘liberdade’ e a ‘responsabilidade’ de fazer escolhas (estes dois conceitos também estão incontornavelmente ligados na filosofia existencialista sartreana). O único tipo de escolha que está vedado a um ser humano, diante das situações concretas que a ele se apresentam, é o de não fazer escolhas. Aqui, a ideia de que “o homem está condenado a ser livre” adquire seu pleno sentido. Em síntese, a angústia humana estabelece-se diante da sua responsabilidade de escolher.
Existe outra célebre frase de Sartre que também fala implicitamente de suas escolhas: “o homem é um projeto inacabado”. Dito de outra forma, o homem faz-se a si mesmo – e está sempre por se fazer. Enquanto isso, fora o próprio ser humano, todos os demais animais já possuem sua existência determinada desde o nascimento de cada um dos indivíduos de sua espécie. Uma abelha, ao nascer, já está destinada a habitar uma colmeia, a inserir-se na função que a ela foi determinada pela sua casta biológica dentro da espécie das abelhas, e a trabalhar em um grande sistema voltado para a produção de mel e para a estabilidade da hierarquia que culmina com a abelha-rainha – esta também já apresentando seu destino individual determinado desde o seu nascimento destacado de todas as demais abelhas. As abelhas, como as ovelhas, as abelhas não podem escolher, e o seu modo de ‘existência’ já está determinado previamente e sintonizado com a sua ‘essência’ (mais dois conceitos centrais no existencialismo). O próprio Sartre utiliza um exemplo enfático, ao se referir aos objetos e contrastá-los com a existência humana:

"Consideremos um objeto fabricado, como, por exemplo, um livro ou um corta-papel. Tal objeto [...] é ao mesmo tempo um objeto que se produz de uma certa meneira e, por outro lado, que tem uma utilidade definida, e não é possível imaginar um artífice que produzisse um corta-papel sem saber para que há de servir tal objeto. Diremos, pois, que, para cada corta-papel, a essência - quer dizer, o conjunto de receita e de características que permitem produzi-lo e defini-lo - precede a existência. E assim a presença, frente a mim, de tal corta-papel está bem determinada" (SARTRE, 1946).


Com o animal humano, entretanto, “a existência precede a essência” (outra célebre frase de Sartre). A essência de um homem (aquilo que ele pode vir a se tornar) procede diretamente de suas escolhas. Mesmo um africano que fosse capturado no século XVII para ser transformado em escravo e enviado ao cativeiro nas Américas, em que pese a crueldade que foi praticada contra ele, precisará fazer suas escolhas. Adaptar-se, resistir, definhar e morrer, atirar-se ao oceano na viagem a que será obrigado em sua diáspora? Chegando ao cativeiro, o que escolherá? Aprender a língua do seu opressor, e através dela negociar melhores condições de existência? Resistir ao aprendizado da língua, como uma forma de não ser tragado pela cultura do opressor? Fugir solitariamente? Fugir em grupo? Suicidar-se? Até mesmo o escravo sobre o qual se abate a crueldade do cativeiro estaria “condenado a ser livre”, pois precisaria fazer as suas escolhas – conscientes ou inconscientes. Dessas escolhas decorrerá a sua essência, aquilo que ele poderá vir a ser.
O nosso objetivo aqui não é o de discutir todos os meandros e complexidades da filosofia existencialista sartreana, mas apenas mostrar que o conceito de ‘angústia’, nessa filosofia, adquire delineamentos próprios. Para além do que propõe a Psicologia, que se propõe a tratar a angústia no plano individual e normalmente como uma disfunção, o conceito de ‘angústia’ é generalizado na filosofia sartreana para toda a espécie humana: torna-se uma característica fundante de cada um dos indivíduos da espécie e um aspecto que se conecta a outros conceitos que se ajustam uns aos outros na filosofia proposta por esta corrente existencialista. Enquanto isso, o conceito de angústia mostra-se igualmente importante na filosofia de Martim Heidegger (1889-1976) – mas, aqui, a angústia que se coloca no centro da vida humana é a ‘consciência de finitude’. O homem é o único animal que, a todo instante, tem a consciência de que vai morrer; e que, em um nível consciente ou inconsciente, em todos os instantes pensa na sua morte. Já na filosofia de Soren Kierkegaard (1813-1855), filósofo dinamarquês que é apontado como um precursor do Existencialismo, a angústia é constituída a partir de uma tensão entre o conhecimento e a fé.
Nossa intenção, com esta pequena digressão, foi a de mostrar que a palavra angústia pode desempenhar o papel simples de uma palavra que empregamos na vida comum, ou pode ser alçada à posição de um conceito que assume diferentes significados e funções em correntes filosóficas diferenciadas, ou ainda em outros campos como o da prática clínica dos psicólogos. De igual maneira, em determinado ambiente filosófico como o existencialismo sartreano o conceito de ‘angústia’ gera conexões específicas, ligando-se a outros conceitos como o de ‘existência’ e ‘liberdade’, palavras que também podem se apresentar como expressões verbais simples inseridas nas conversas cotidianas, e que só assumem a função de conceitos em determinados contextos filosóficos ou científicos. O exemplo nos mostra que não existe propriamente esta “palavra comum” ou aquele “conceito” específico como expressões verbais que habitam necessariamente espaços diferenciados do repertório de uma comunidade linguística. Também pudemos ver, com o exemplo proposto, que a polissemia se apresenta nas diferentes definições do conceito de ‘angústia’ e nos ajustes diferenciados que ocorrem em cada corrente filosófica que o trazem para a centralidade de seus discursos.
Vamos dar mais um exemplo de oscilação entre a palavra comum e os conceitos. A princípio, ninguém diria que lápis é, senão, uma palavra comum. Quando pedimos a alguém um lápis emprestado estamos certos de que seremos compreendidos e que nosso interlocutor nos estenderá a mão para nos passar um lápis, e não um livro ou um corta-papel. Dificilmente, e isso seria mesmo ridículo, alguém responderá ao nosso pedido de empréstimo de um lápis com uma solicitação para que definamos melhor o que entendemos por lápis. No entanto, se estivermos negociando com um fabricante de lápis, ou mesmo procurando este objeto em uma papelaria especializada, no mesmo instante seremos indagados acerca do tipo de lápis que estamos procurando. Há lápis próprios para o desenho, outros para fazer contornos em telas de pintura, outros para marcar paredes. Há também lápis que funcionam melhor com certos tipos de papéis, e assim por diante. Para o fabricante de lápis, e para os profissionais que usam estes instrumentos de desenho e escrita, lápis pode se apresentar como um conceito. De igual maneira, se empregamos a palavra cadeira de maneira cotidiana, já um marceneiro certamente utilizará a cadeira como conceito, e buscará utilizá-la como um 'conceito agrupador' que prevê tipos mais específicos de cadeiras. Poderíamos dar inúmeros outros exemplos para mostrar que, a princípio, a mais inocente palavra comum pode, em certas situações, envergar as majestosas vestes de um ‘conceito’. Não obstante, é claro que cada campo de saber mobiliza mais habitualmente um certo conjunto de palavras ou expressões verbais que devem ser entendidos como conceitos - palavras cujo significado deve ser discutido com maior precisão, e que funcionam simultaneamente como 'unidades de comunicação' entre os praticantes de determinado campo de saber, e como 'unidades de conhecimento' que nos habilitam a organizar melhor a realidade examinada.


(O presente texto foi baseado no livro "Os Conceitos - seus usos nas ciências humanas", de José D'Assunção Barros (Editora Vozes, 2015).


[Para dar continuidade  e aprofundamento ao estudo deste tema ver o artigo Sobre o uso de conceitos nas ciências humanas