História e Memória: algumas relações possíveis
História e Memória - e aqui será preciso considerar tanto a possibilidade de
se falar em uma "Memória Coletiva", como na situação mais corrente da
"Memória Individual" - associam-se de muitas maneiras. Por um lado, a
memória pode se tornar objeto para a ciência histórica. Como historiadores,
podemos estudar os modos como uma sociedade produz memória, e, ainda mais
especificamente, os modos como uma determinada sociedade produz uma memória
coletiva relacionada aos acontecimentos históricos que fazem parte da sua
construção identitária.
Por outro lado, a História produzida pelos historiadores também pode tomar a
memória como fonte histórica. Aqui se abrem duas possibilidades, Os
historiadores podem tomar como fontes históricas tanto as fontes produzidas
pela Memória Coletiva - os chamados lugares de memória, por exemplo - como
podem tomar como fontes históricas os depoimentos produzidos pela chamada
História Oral, da qual falaremos na segunda parte deste texto.
Por fim, se a História pode se valer na Memória tanto como fonte como
objeto, esta relação pode ser invertida, pois a Memória também pode ser
construída a partir de representações específicas dos acontecimentos históricos
(a história - campo de acontecimentos). Neste último caso, é importante termos
em vista que uma coisa é a História produzida pelos historiadores - uma História
produzida cientificamente, a partir de regras bem definidas, de análises
críticas das fontes, de aportes teóricos aceitos pela comunidade
historiográfica, e de uma busca de precisão com relação aos fatos a serem
considerados. Outra coisa é a História produzida pela memória popular, pelos
memorialistas (autores que trabalham com memória histórica mas sem serem
historiadores), pelas instituições estatais que criam personagens para serem
emulados ou que enaltecem oficialmente eventos para serem lembrados em comemorações.
A Memória Individual
A memória coletiva precisa ser bem diferenciada da memória individual, e já
veremos como distinguir uma da outra. Contudo, ambas possuem algo em comum:
por um lado são fundadas em lembranças e esquecimentos; por outro lado, nenhuma destas memórias é estática, e ambas devem ser compreendidas como processos que são continuamente reatualizados de modo a redefinir permanentemente a dialética da lembranças e esquecimentos. Tanto uma como outra destas memórias, além disso, constroem e reconstroem narrativas ao longo de todo o período em que perduram, de modo que não podemos entendê-las, em nenhuma hipótese, como meros "depósitos" de lembranças ou de informações. Vamos tentar compreender, antes de
mais nada, o funcionamento da Memória Individual, e poderemos a partir daí
estabelecer algumas analogias em relação à Memória Coletiva.
De todas as coisas que aconteceram em sua vida, cada indivíduo seleciona -
através de um processo complexo e inconsciente - apenas algumas para
serem lembradas. Podemos nos esquecer de algumas coisas porque elas nos
traumatizaram e não poderíamos nos lembrar diretamente delas sem grandes
sofrimentos: consistindo este em um processo psicológico chamado de recalque, sendo que habitualmente os eventos traumáticos que foram selecionados para serem
esquecidos ou para serem ocultados no fundo do inconsciente acabam se
conservando sob a forma de fobias, inibições inexplicáveis, ou mesmo processos
somáticos diversos. O esquecimento de eventos através do recalque é, neste caso, um mecanismo de defesa psicológica do indivíduo, mas que pode acabar por produzir outros tipos de distúrbios que frequentemente são tratados por processos de terapia. Posto, isto, o mecanismo do recalque está muito longe de constituir a lógica que rege o processo de esquecimento. Na maior parte das vezes, esquecemo-nos de um
grande número de coisas porque o cérebro humano individual apresenta limitações
físicas muito claras, e não poderia conservar mesmo todas as lembranças possíveis. A
capacidade de armazenamento de informações no cérebro é limitada, como também
ocorre, aliás, com os próprios computadores, e por isso o sistema precisa decidir a cada instante o que será
lembrado e o que será esquecido. Tudo aquilo que é considerado pouco relevante
pelo sistema cerebral de memória seria
a priori esquecido, ao mesmo tempo em que são
conservadas muitas coisas que são avaliadas por este sistema como relevantes,
úteis ou importantes para que o indivíduo enfrente com sucesso situações
similares. Aprendemos com nossos erros, de modo a não cometê-los novamente no
futuro, porque estes erros foram selecionados pelo sistema de memória para
serem lembrados. Devo ressaltar ainda que, embora exista uma lógica de lembranças e esquecimentos que devem (ou deveriam) favorecer a vida do indivíduo, a memória dos indivíduos humanos também pode ser habitada por muitos entulhos e coisas sem importância - coisas que realmente não são importantes, mas que por algum motivo foram selecionadas como lembranças e se depositaram no repertório básico de conteúdos que são constantemente lembrados pelo indivíduo. Deste modo, a memória individual pode lidar com coisas importantes e relevantes, mas também com coisas sem importância (e isso, aliás, também irá ocorrer com a memória coletiva, conforme veremos mais adiante).
É importante ter em vista, ainda, que a memória humana não é estática,
e tampouco é precisa como a memória de um computador. A memória de um indivíduo,
embora se baseie em lembranças básicas que foram selecionadas para o seu fundo
de memória, está sujeita a permanentes processos de reconstruções ao longo da vida de um indivíduo, e
também está sempre incontornavelmente atravessada por imprecisões que podem fazer com que, em momentos diversos, algumas informações se misturem e
que a datação de eventos se confunda. Todo indivíduo, ao longo de sua vida, vai
reconstruindo a sua memória de alguma maneira, e muitas vezes em função de
processos que ocorrem a cada nova etapa de sua vida. Nesta reconstrução,
algumas lembranças que estavam registradas a nível inconsciente podem ser
convocadas, e outras podem ser empurradas para o inconsciente. Algumas
lembranças e informações também podem ser distorcidas, ou submetidas a falsas
associações e conexões com outras lembranças. Além de tudo, como já se disse, é preciso lembrar
que a memória não é simplesmente um depósito de informações prontas para serem
utilizadas, mas que também constitui um conjunto de narrativas que vão sendo produzidas e
reconstruídas pela mente do indivíduo. As informações , deste modo, vão sendo
conectadas na mente do indivíduo de modo a produzir narrativas que ele conta para si
mesmo e para os outros, e nas quais o indivíduo acredita sem duvidar em nenhum
instante que sejam suas vivências reais, mesmo que estas narrativas estejam
atravessadas por eventuais imprecisões, distorções e falsas correlações, ao
lado dos aspectos verdadeiros que também são trazidos pela memória.
Reconstruções inconscientes e semiconscientes da memória ocorrem todo o
tempo na vida de qualquer indivíduo. Por exemplo, digamos que um indivíduo
redefiniu o seu círculo de amizades e relacionamentos em um período recente.
Inconscientemente, ele pode ser levado de alguma maneira a refabricar algumas
de suas memórias, amenizando lembranças ruins relacionadas aos indivíduos que
agora se tornaram seus amigos; em contrapartida, pode começar a se lembrar de
adversidades ou aspectos negativos relativos às suas relações, no passado, com
indivíduos que agora se tornaram seus inimigos. Ou seja, as reconstruções da
memória relativa ao passado também atendem a demandas do presente. Com relação
a informações, podem ocorrer também distorções de todos os tipos. A lembrança baseada em eventos que realmente foram vividos pode se intermesclar - no processo de reconstrução de memória vivido por um indivíduo - com "lembranças inventadas". Não é incomum, por exemplo, que um indivíduo ouça alguma narrativa que se refere a ele, de um antigo parente ou amigo, e que apenas em função de ter ouvido esta narrativa passe "a se lembrar" daquilo que lhe foi dito, mesmo que tais coisas não tenham ocorrido. O cérebro humano é em boa parte sugestionável, e isso também atua na reconstrução da memória, sem que o próprio indivíduo esteja consciente disto. Por motivos como estes, a memória de um indivíduo não é plenamente confiável. Mesmo que a memória traga registros de coisas que efetivamente foram vividas, pode também vir entremeadas com aspectos que não correspondam a nenhuma realidade efetivamente vivenciada pelo indivíduo; e mesmo os elementos reais que são trazidos pela memória podem ser ressignificados de muitas maneiras. A memória pode trair o indivíduo a seu próprio favor (ou contra ele mesmo), e produzir distorções de todos os tipos, esquecimentos vários, ênfases imprevistas, além de ajudar a conformar narrativas que revelam pontos de vista e interferências do presente. Toda esta instabilidade e imprecisão à qual está sujeita a memória de um indivíduo traz
implicações para a prática da História Oral, que, conforme veremos mais
adiante, é a modalidade historiográfica que colhe depoimentos de indivíduos
para examinar certos processos históricos.
Com tudo isso, e antes de passar ao próximo item, não queremos dizer que a
memória dos indivíduos é inútil aos historiadores. Pelo contrário, a História Oral funda-se
exatamente na possibilidade de provocar depoimentos de indivíduos que
presenciaram certos acontecimentos ou vivenciaram determinados processos
históricos, e cujas memórias passam a ser trabalhadas pelo historiador como
fontes históricas. O que ocorre, neste caso, é que - por mais que a memória de
um indivíduo esteja sujeita a imprecisões, distorções, reconstruções
inconscientes e semiconscientes, sem contar a interferência de perspectivas
pessoais que afetam o modo de ver e de se lembrar sobre as coisas - ainda assim
há inúmeras técnicas e metodologias que fazem dos depoimentos individuais uma
fonte de grande riqueza para os historiadores.
Ao trabalhar com a memória individual humana para examinar determinado
processo histórico, é óbvio que o historiador não irá confiar acriticamente no
depoimento de um único indivíduo, e basear todas as suas conclusões
historiográficas neste depoimento isolado. Em geral, a validade do trabalho
histórico ou antropológico com depoimentos é fortalecida pelo trabalho
comparativo. O historiador pode trabalhar com muitos depoimentos e compará-los
- não apenas para checar a validade objetiva de certas informações, mas também
para contrastar diferentes pontos de vista e confrontar distintas construções
narrativas sobre os mesmos acontecimentos. O depoimento de um indivíduo também
pode ser matizado com a consulta a outros tipos de fontes, como documentos
escritos, relatórios, jornais ou quaisquer outras.
Além disso, o mais importante é situar cada depoimento no interior de um
lugar social e interindividual de produção de memória. Cada indivíduo que dá
uma entrevista a um historiador precisa estar, preferencialmente, classificado
no interior de um perfil social que o aproxima de outros indivíduos e que o
contrasta com outros tantos, pertencentes a outros perfis. Ao examinar certo
processo histórico, um historiador pode coletar entrevistas, por exemplo, de um
universo maior de indivíduos que, não obstante, pode ser previamente
subdividido em diferentes subconjuntos relacionados a diferentes perfis
socioculturais. É imprescindível situar cada indivíduo que presta depoimentos
no interior de uma identidade complexa que inclui sua classe social, faixa
etária, gênero, categoria profissional, grau de escolaridade, ideologia
declarada, posição em relação ao problema examinado, e inúmeros outros
aspectos. Dependendo do problema histórico examinado, também pode funcionar o
agrupamento de depoentes em diferentes grupos ou perfis que revelarão
diferentes posições sociais ou culturais diante de acontecimentos ou processos
históricos específicos.
Ao pensar a inserção social de cada indivíduo, o historiador pode analisar
previamente as condições sociais e circunstâncias deste produtor de discursos
que é o indivíduo entrevistado, e isso já irá ajudá-lo de saída a se colocar
criticamente diante daquilo que será dito. Depoimentos fornecidos por
entrevistados agrupados no mesmo perfil também podem ser comparados, e isso
levará o historiador a perceber quando certas percepções e narrativas são
efetivamente compartilhadas por muitos indivíduos com o mesmo perfil, e quando,
ocasionalmente, são produtos de uma narrativa pessoal que foi muito distorcida
pelas imprecisões e redefinições de memória de um único indivíduo. Trabalhar
com grupos de entrevistados pode proporcionar um salto da memória individual
para a memória coletiva. Isso não significa, é claro, a depender do problema
histórico em estudo, que não sejam úteis entrevistas individualizadas.
Com tudo isto, quisemos apenas mostrar que - contra todas as imprecisões e
reconstruções que possam afetar cada memória individual - os depoimentos
obtidos através de entrevistas podem ser, sim, extremamente úteis para os
historiadores. A História Oral funda-se nesta possibilidade.
Memória Coletiva
As memórias coletiva e individual, embora sejam muito diferentes uma da outra em alguns aspectos, possuem alguns elementos em comum. Para começar, ambas se baseiam em lembranças e em esquecimentos. Este conteúdo, além disso, é mutável, pois tanto na memória individual como na memória coletiva as lembranças e esquecimentos podem ser reatualizados ou redefinidos: elementos que dormiam no fundo do inconsciente de um indivíduo, ou que estavam esquecidos no fundo dos arquivos e registros de uma sociedade, podem ser convocados em certo momento, e outros podem ser relegados ao esquecimento. Tanto na memória individual como na memória coletiva o presente pode pressionar a memória a redefinir o passado que será lembrado pelo indivíduo ou pela sociedade. Ao mesmo tempo, em ambos estes tipos de memória, mesmo considerando um mesmo repertório de lembranças e esquecimentos e supondo que ele se conserve o mesmo, este repertório é constantemente ressignificado. Isso se dá porque nem a memória individual nem a memória coletiva se resume às informações e às unidades de lembrança e esquecimento. A Memória é também um ato de construir e reconstruir narrativas. Com os mesmos elementos a serem lembrados, novas narrativas podem ser reconstruídas, tanto pelo indivíduo que se empenha em se lembrar do seu passado, como pelas sociedades que reatualizam a sua própria história e lembrança coletiva dos eventos que vivenciaram.
Estes aspectos são comuns às memórias individual e coletiva: dialética entre lembranças e esquecimentos; reatualização constante e instabilidade relativa do seu conteúdo; ressignificações afetivas pressionadas pelo presente; reorganização do conteúdo memorável em novas narrativas; instrumentalização da memória para a vida presente do indivíduo ou da sociedade. Não obstante, memória individual e memória coletiva também diferem uma da outra em muitos aspectos. O mais evidente deles é o da perecibilidade. A memória individual é inevitavelmente perecível: está sujeita a desaparecer assim que o indivíduo não estiver mais presente. Quando muito, podem sobreviver à morte do indivíduo alguns registros elaborados em certo momento temporal de seu processo de memória viva, nos casos em que este indivíduo tenha gravado depoimentos em mídias diversas, ou escrito suas memórias em algum texto. Mas estes registros, deve se compreender bem, não são a Memória Individual em si mesma, mas apenas a manifestação desta memória em um certo momento no tempo e no espaço. A Memória - tanto a Individual como a Coletiva - não é apenas um repertório de lembranças e esquecimentos, mas sim um processo vivo, que redefine as próprias lembranças e esquecimentos, que constrói narrativas durante todo o tempo de vida do indivíduo ou da sociedade. A Memória é esta constante reconstrução, e não o repertório de lembranças que estão disponíveis em algum momento contra tudo aquilo que no momento está esquecido. Por isso, se um indivíduo escreve as suas memórias, ele está apenas elaborando uma fotografia ou filme - aqui utilizados metaforicamente - sobre o que ele decidiu lembrar e divulgar a seus leitores a partir dos elementos de memória que tinha à sua disposição naquele momento. Vinte anos depois, se ele fosse escrever um livro de memórias sobre os mesmos acontecimentos, este já seria um outro livro - um outro filme ou uma outra fotografia - pois agora ele se lembraria de outras coisas e, mesmo que se lembrasse das mesmas coisas, construiria novas narrativas pressionado pelo seu novo presente. Quanto à Memória - como processo vivo e permanentemente reatualizado - o indivíduo pode vivê-la e vivenciá-la, mas não transmiti-la a outros (pelo menos não no atual estágio da tecnologia humana). Quando o indivíduo morre, morre com ele a sua memória. Podem ficar alguns registros produzidos por esta em algum momento; mas a memória mesmo, esta se foi.
Com a Memória Coletiva, entretanto, dá-se algo distinto. Os indivíduos irão se suceder uns aos outros através da sucessão das diversas gerações de indivíduos que compõem uma determinada sociedade. A Memória produzida coletivamente por estes indivíduos - de maneira diversificada e polifônica, englobando narrativas variadas, e algumas antagônicas por trazerem os pontos de vista de diferentes grupos sociais - esta permanecerá, para além da morte de cada indivíduo que contribuiu para produzi-la. A Memória Coletiva preserva-se, para além do desaparecimento de cada indivíduo, como processo. Os registros específicos podem desaparecer por decisões da coletividade ou de grupos interindividuais, ou mesmo de agentes individuais isolados, mas o processo social de produção da memória irá prosseguir. Uma estátua de um indivíduo que um dia foi enaltecido pode ser derrubada, ou transferida de um lugar central para uma praça periférica; e um incêndio pode destruir documentos, ao mesmo tempo em que um decreto governamental pode se empenhar em fabricar um novo herói. Ou seja, os registros específicos podem mudar, podem ser relegados ao esquecimento ou mesmo serem destruídos, mas o processo de permanente reconstrução da memória coletiva prossegue para além das vidas individuais e mesmo para além das decisões institucionais e governamentais. A Memória Coletiva de uma sociedade, enfim, só poderia desaparecer se a própria sociedade desaparecesse, e não deixasse sobreviventes. Neste caso, restariam possivelmente os registros deixados por esta Memória Coletiva - sob a forma de cultura material, talvez transformada em ruínas; de documentos, talvez deslocados para um arquivo; de lendas e cultura oral que talvez sobreviva em outras sociedades; de piadas, que continuarão a ser contadas muito longe dali; e assim por diante. De todo modo, à parte a situação de desaparecimento radical de toda uma coletividade, a Memória Coletiva - ou o processo de produzir memória coletiva - tende a se perpetuar e não está adstrito à vida de cada indivíduo que fez parte em determinado período de uma comunidade.
Feitas estas observações iniciais sobre as semelhanças e distinções entre a Memória Individual e a Memória Coletiva, podemos passar a uma reflexão sobre a sistematização do próprio conceito de "memória coletiva", que também tem a sua própria história. Antes de discutir o conceito mais sistematizado de "memória coletiva", é importante, aliás, dar a perceber que a noção de que existe uma memória coletiva - e de que esta memória coletiva é importante para os rumos de uma sociedade - é tão antiga quanto a própria história da humanidade. Nos primeiros impérios, aqueles que os geriram já tinham clareza de que era importante exercer um poder político sobre a Memória Coletiva. Alguns dos antigos imperadores romanos, por exemplo, costumavam destruir as estátuas que enalteciam os seus antecessores, pelo menos as daqueles que não faziam parte de sua linhagem ou círculo de alianças geracionais. Desde os primeiros estados-nações, há o empenho em financiar a escrita de livros didáticos que selecionam determinadas lembranças e promovem certos esquecimentos, e com isto tenta-se interferir na moldagem de uma memória coletiva. Desde o período neolítico, e mesmo desde o paleolítico, tribos diversas se preocuparam em designar membros da comunidade para funcionarem como agentes reconhecidos da memória coletiva, que deveria se expressar na transmissão oral de certas narrativas para as gerações seguintes. Estes exemplos, e muitos outros, mostram que desde há muito tempo os governantes, líderes - e a própria comunidade como um todo - possui uma noção menos ou mais clara a respeito deste processo que constitui a Memória Coletiva. Os empenhos políticos em controlar a memória coletiva também são muito antigos. No entanto a reflexão mais propriamente científica sobre a Memória Coletiva é bem mais recente.
Nas ciências humanas, o conceito de memória coletiva já vem sendo desenvolvido desde a primeira
metade do século XX. Maurice Halbwachs - um dos pioneiros no estudo historiográfico e sociológico
da memória - foi um dos primeiros a propor que, no espaço interdisciplinar relacionado às ciências humanas, se ultrapassasse o estranhamento original gerado a
partir da ideia, bem presente no senso comum, de que uma faculdade como a
Memória só poderia “existir e permanecer na medida em que estivesse ligada a um
corpo ou a um cérebro individual” (
HALBWACHS,
2006, p.71). Sua perspectiva era a de que as lembranças poderiam ser
organizadas de duas maneiras: agrupadas em torno do ponto de vista de uma só
pessoa, ou se distribuindo no interior de uma determinada sociedade. Os
indivíduos, desse modo, poderiam participar destes dois tipos de memória, e no
caso da Memória Coletiva seriam capazes de se comportar como membros de um
grupo de modo a evocar lembranças interpessoais.
Halbwachs já refletia nesta época tanto sobre o contraste entre os dois
tipos de memória - individual e coletiva - como sobre a interação e mútua interpenetração
de ambas em certas ocasiões, fazendo notar que mesmo a memória individual podia
reforçar algumas de suas lembranças, ou mesmo preencher lacunas, apoiando-se na
memória coletiva (
2006, p.71). De igual
maneira, a Memória Coletiva poderia conter, em certo sentido, as memórias
individuais, mas não se confundiria com elas, ou sequer com o seu somatório,
pois evoluiria "segundo suas próprias leis", para utilizar uma
expressão do próprio Maurice Halbwachs (
2006,
p.72). A contribuição ímpar do sociólogo francês estava em dar a
perceber que – longe de ser processo que apenas se dá no cérebro humano a
partir da atualização de vestígios que foram guardados neurologicamente pelos
indivíduos - havia uma dimensão social tanto na Memória Individual como na Memória
Coletiva. Isto porque mesmo o indivíduo que se empenha em reconstituir e
reorganizar suas lembranças irá inevitavelmente recorrer às lembranças de
outros, e não apenas olhar para dentro de si mesmo em conexão com um processo
meramente fisiológico de reviver mentalmente fatos já vivenciados. Isso sem
deixar de considerar o que é ainda mais importante: a memória individual requer
como instrumental palavras e ideias, e ambas são produzidas no ambiente social.
Dito de outra forma, se no caso da Memória Individual são os indivíduos que, em
última instância, realizam o ato de lembrar, no plano coletivo seriam os grupos
sociais que determinariam o que será lembrado, e como será lembrado. Halbwachs
também chamava atenção para um aspecto que nos interessará particularmente: a
Memória (e tanto a individual como a coletiva) está sempre limitada no espaço e
no tempo.
Os Lugares de Memória
Para além da própria constituição de um conceito de
memória coletiva,
que remonta originalmente aos primeiros trabalhos de Halbwachs, o novo campo de
estudos foi encontrar um novo momento conceitual importante com o
desenvolvimento da noção de “lugares de memória”. Esta nova entrada conceitual
surgiu da necessidade de aprofundar algumas questões. Através de que ambientes,
de que recursos, de que práticas e representações, de que suportes materiais se
produz e se difunde a memória coletiva? A noção de ‘lugares de memória’ abre
uma nova perspectiva em termos de organização e percepção da Memória Coletiva.
Ela também permite que os historiadores comecem a pensar uma grande quantidade
de fontes que permitiriam acessar a Memória Coletiva, para muito além das já
mencionadas fontes testemunhais que, através da prática sistemática e crítica
de entrevistas, permitiram o desenvolvimento da modalidade da História Oral. Os
lugares de memória, conforme veremos, proporcionam novos tipos de fontes
históricas para os historiadores que estejam interessados em trabalhar com a
Memória Coletiva.
O primeiro grande empreendimento teórico e prático nesta novaa direção deve
ser atribuído a Pierre Nora e a um grande número de historiadores, sociólogos,
antropólogos e memorialistas franceses que - nas últimas décadas do século XX -
integraram-se ao projeto coletivo relacionado aos “Lugares de Memória”, o qual
resultou em sete volumes de textos dedicados à Memória Social na França. Depois
do empreendimento pioneiro de Pierre Nora, projetos similares surgiram em
outros países europeus, como a Alemanha e a Itália, e mais adiante em diversas
partes do mundo. Através desta prática, resultante em livros e grandes
circuitos de palestras e eventos, o conceito de “lugar de memória” foi
encontrando sua definitiva estabilização, e hoje é um conceito fundamental para
entender a Memória Coletiva.
Quais são, antes de mais nada, os propalados lugares da Memória. Jacques Le
Goff os resume, a partir de uma passagem de Pierre Nora, em seu verbete
“Memória” (
1990, p.473):
"[há] os
lugares topográficos, como os arquivos, as bibliotecas e os museus; lugares
monumentais como os cemitérios e arquiteturas; lugares simbólicos como as
comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares
funcionais, como os manuais, as autobiografias ou as associações"
Trata-se, naturalmente, apenas de uma pequena lista exemplificativa. Na
célebre coleção francesa de sete volumes publicada sob a direção de Pierre
Nora, uma consulta aos sumários de cada volume revela de imediato a
complexidade e extensão envolvida pelos lugares de memória. Símbolos,
Monumentos, a Pedagogia com suas enciclopédias e dicionários, as Heranças como
os santuários régios e as relíquias monásticas, as Paisagens, o Patrimônio, o
Território e mesmo a própria Língua, que realiza memória em si mesma ao trazer
consigo traços de grupos específicos e da humanidade como um todo ... eis aqui
um vasto universo de “lugares de memória” que inclui a própria historiografia,
seja esta científica ou cronística. Onde existe o humano, pode-se dizer que a
Memória estabelece-se, gerando os seus lugares. Desde as células familiares,
que organizam sua memória através de recursos os mais diversos como as
genealogias e os álbuns de fotografias, até as grandes Nações que erguem museus
e arquivos para dar visibilidade à sua própria identidade, a Memória apresenta
definitivamente muitos “lugares”.
Mas há, por fim, aquilo que poderíamos chamar de ‘lugares por trás dos
lugares’, aqueles nos quais iremos encontrar não a produção ou elaboração da
memória coletiva, mas os seus criadores maiores, as forças que impõem a memória
coletiva de modos diversos, gerando os lugares de memória mais específicos. São
estes ‘lugares por trás dos lugares’ “os Estados, os meios sociais e políticos,
as comunidades de experiências históricas ou de gerações, levadas a constituir
os seus arquivos em função dos usos diferentes que fazem da memória” (
LE GOFF, 1990, p.473).
Entre os grandes lugares, pólos importantes de investimento para estas
forças maiores que determinam a memória, estão aqueles espaços sócio-culturais
que Leroi-Gourhan denominou “Instituições-Memória” (
1964-65, p.67-8). Começaremos pelos grandes arquivos nacionais.
Sabe-se de arquivos reais desde as antigas civilizações, dos quais nos dão
exemplos os arquivos reais do palácio de Ougarit, na antiga Síria, ou as
numerosas tabuletas ordenadas encontradas no palácio de Mari, entre tantos
casos examinados por Leroi-Gourhan. Mas é com um novo sentido que o século
XVIII já começa a instituir, ainda timidamente, seus depósitos centrais de
arquivos, e mais como desdobramentos da erudição régia do que por necessidades
voltadas para a construção da identidade nacional, o que ocorrerá decididamente
na França a partir da Revolução Francesa e, nos demais países da Europa, logo
após o período da Restauração. Um desenvolvimento inteiramente análogo é o que instituirá
os Museus. Também discretamente instaurados a partir de meados do século XVIII,
é também a partir da Revolução Francesa que se inicia a era dos museus
nacionais (
LE GOFF, 1990, p.464).
Entre os lugares da memória “simbólicos”, destacam-se estes grandes e por
vezes ruidosos empreendimentos voltados para a memória coletiva que são as
comemorações, tal como a comemoração anual da tomada da bastilha em 14 de
julho, e particularmente a grande comemoração que ocorreu em 1989, assinalando
os duzentos anos da Revolução Francesa. Na verdade, a tradição firma-se já a
partir dos próprios tempos da Revolução Francesa, tal como nos mostram as
pesquisas de Mona Ozouf (1976) e de Rosemonde Sanson (
1976), e a história das festas revolucionárias revelará uma interessante
dialética de lembranças e esquecimentos nos quais, no decurso dos vários
períodos, alguns episódios emergem em detrimento de outros e depois recaem
novamente no esquecimento, para atender aos interesses políticos de um novo
momento (
OZOUF, 1976). A própria
comemoração da Revolução Francesa, como um todo, desaparece sob Napoleão e
reaparece em 1880, tal como assinala Rosemonde Sanson sua pesquisa sobre
A Festa e a Consciência Nacional (
1976). A comemoração, deste modo, é desde já um
importante “lugar de memória”, um momento em que se atualiza o grande evento,
de importância para a formação e preservação da Identidade da população que o
tornou emblemático, ou em vista de projetos políticos que buscam direcionar a
opinião pública para suas próprias finalidades, do que nos dão fartos exemplos
as festas na Alemanha Nazista e na Itália Fascista.
Se a comemoração é lugar de memória, curiosamente a “descomemoração” também
pode sê-lo. Ian McBride, em
History and Memory in Modern Ireland
(
2001) chama atenção para a Guerra de
memórias que se instaura entre protestantes e católicos irlandeses,
estabelecendo-se entre estes a tradição da “descomemoração explosiva”, que
consiste em destruir através do vandalismo espontâneo ou do terrorismo bem
planejado os monumentos ou estátuas erguidos pelos católicos. Surge aqui a
noção de uma “contramemória”, ela mesma um lugar a mais, também discutido na
coletânea dirigida por Pierre Nora.
As chamadas ‘memórias históricas’ também constituem capítulo importante para
o grande universo da Memória Coletiva, e levam a repensar mais uma vez o seu
papel na sociedade. Quando surge este vivo interesse em recuperar certas
“memórias históricas”, senão no contexto de um tempo acelerado em que as
identidades se vêem ameaçadas? A história e a memória entrelaçam-se nas
“memórias históricas” para preencher uma função importante: quando a memória
viva de determinados processos e acontecimentos começa a se dissolver através
do desaparecimento natural das gerações que os vivenciaram, começa a se tornar
ainda mais necessário um movimento de registro destas memórias. Foi assim, por
exemplo, que se intensificou o interesse pela produção das “memórias do
holocausto”. Assegurar o registro destes acontecimentos tão trágicos é também
uma forma de adquirir controle sobre eles, de impedir que um dia se repitam,
que caiam no esquecimento e que deixem de ser analisados criticamente.
Entre os objetos materiais e textuais da memória, os Dicionários e
Enciclopédias ocupam um lugar de destaque, e podem ser descritos como vastos
registros de memória parcelada ordenados alfabeticamente. Conforme os estudos
de Leroi-Gourhan, os dicionários e enciclopédias invadem o cenário dos lugares
de memória já no século XVIII, (
1964-65, p.70-71).
No princípio, os dicionários dirigem-se não apenas aos eruditos, mas também aos
artesãos e às fábricas, e a
Grande
Enciclopédia de 1751 é descrita por Leroi-Gourhan como “uma série de
pequenos manuais reunidos no dicionário”, ou como “uma memória alfabética
parcelar na qual cada engrenagem isolada contém uma parte animada da memória
total” (
1964-65, p.70-71). Le Goff lança
uma instigante questão: não terá sido a Enciclopédia o grande detonador da
Revolução? (
LE GOFF, 1990, p.461).
A emergência dos Dicionários e Enciclopédias ao primeiro plano dos lugares
de memória no século XVIII lança luz obre uma questão importante para os
historiadores da memória, que é precisamente a da dinâmica da dialética de lembranças
e esquecimentos que se atualiza na Memória Coletiva, fazendo surgirem novos
lugares de memória em detrimento de outros, e deslocando certos lugares de
memória do centro para a periferia, e vice-versa. Assim, ao mesmo tempo em que
no século XVIII entram em ascensão os Dicionários e Enciclopédias – estes pólos
para a acumulação de uma memória parcelada que se dirige aos “vivos” – já neste
mesmo período entre em franco declínio a comemoração dos mortos, e os túmulos,
mesmo os dos reis, tornam-se muito simples no decurso de um processo que se
inicia no século XVII e se conclui no final do século XVIII (
LE GOFF, 1990, p.461). Vovelle intui que, no
período das Luzes, manifesta-se de alguma maneira uma intenção de “eliminar a
morte”; mas imediatamente depois da Revolução Francesa assiste-se ao retorno da
memória dos mortos, e reinicia-se uma era de cemitérios, monumentalização de
túmulos, profusão de inscrições literárias e proliferação de práticas de culto
aos mortos através de visitas aos cemitérios (
VOVELLE,
1974). O Romantismo, por fim, irá acentuar ainda mais esta tendência.
Este exemplo é particularmente interessante. Mostra-nos um pouco da dialética
de lembranças e esquecimentos da Memória Coletiva, reatualizando nos seus
vários momentos o que se torna importante e o que se torna secundário em termos
de objetos de “memoração”, de “rememoração”, de “comemoração” e de práticas de
memória.
Ainda entre os pequenos objetos de memória, um verdadeiro arsenal se
estabelece em função das práticas comemorativas: selos, moedas, medalhas,
bandeiras, placas e inscrições comemorativas. Todos estes objetos de memória,
obviamente, podem vir a se tornar fontes privilegiadas para os historiadores.
Exemplificam a imposição da Memória dos estados e das nações através dos
pequenos objetos. Mas, passando do plano “macro” à “escala micro”, também a
Família, no recesso e na intimidade do Lar, desenvolve seus próprios recursos.
Vale-se, por exemplo, da fotografia, conforme revelam os sistemáticos estudos
de Pierre Bourdieu sobre os álbuns de família (1965). Mas, eis-nos de volta ao
“macro” através desta mesma Fotografia, uma vez que os estados e os grupamentos
sociais mais amplos também a utilizam. Há até mesmo uma sofisticada engenharia
da memória que se torna possível através da deformação da fotografia, como bem
nos mostrou o stalinismo algumas vezes ao incluir e excluir certas figuras
políticas de um mesmo retrato em momentos históricos e políticos
diversificados. Na Literatura, o tema foi habilmente desenvolvido por George Orwell
no romance
1984, uma crítica a todas
as formas de totalitarismos, mas também uma imaginação acerca das
possibilidades de reconstrução da memória.
A noção dos “lugares de memória” apresenta, portanto, desenvolvimentos
praticamente infinitos, e poderíamos ainda lembrar que os avanços dos estudos
da Genética permitiram um controle extremamente preciso sobre a “memória da
hereditariedade”. É possível, hoje, reconstituir através de pesquisas sobre o
DNA a história biológica e populacional dos diversificados grupos humanos,
permitindo atingir a aventura humana no período que habitualmente é
classificado como pré-história. A “memória genética” da espécie humana, desta
maneira, torna-se uma instância a mais que pode ser acompanhada pelos
historiadores. As potencialidades da combinação de estudos de Memória Coletiva
e da análise da memória hereditária são instigadores: pode-se imaginar o quanto
o rastreamento das descendências e interações entre grupos populacionais, hoje
bastante exequível através da análise das contribuições genéticas presentes no
DNA de grupos humanos, pode proporcionar para uma melhor compreensão das
narrativas míticas e outros produtos da Memória Coletiva.
José D'Assunção Barros
Leia o artigo integral, de onde foram tirados os parágrafos deste texto,
em
Memória e História: uma discussão conceitual (BARROS, José
D'Assunção.
Tempos Históricos, vol.15, n°1, 2011, p.317-343).
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BARROS, José D'Assunção.
Memória e História: uma discussão conceitual. Tempos
Históricos, vol.15, n°1, 2011, p.317-343.
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