quinta-feira, 25 de junho de 2020

Hipóteses na História



O que é uma Hipótese? Como a hipóteses podem ser utilizadas para conduzir uma investigação científica, e, em particular, uma investigação no âmbito das ciências humanas? Como as hipóteses se articulam à necessidade historiográfica de proposição de novas problemas, e de elaboração de interpretações historiográficas? Vamos discutir estes aspectos no texto a seguir, que pode ser útil tanto aos estudiosos de ciências humanas em geral, como também, de maneira mais específica, aos historiadores.





1.  O caráter provisório das Hipóteses e seu papel na pesquisa científica

  O primeiro aspecto que levaremos em consideração acerca do uso de hipóteses para a elaboração de conhecimento científico é o seu uso provisório. Uma hipótese, conforme veremos neste ensaio, tem por finalidade principal a de guiar ou motivar uma investigação, propor respostas possíveis para um problema, colocar o pesquisador em estado de perturbação criadora e em movimento, mobilizar procedimentos metodológicos e ajustá-los às assertivas teóricas, ao mesmo tempo em que pode contribuir para a própria reconstrução destas mesmas assertivas. A hipótese tem por finalidade liberar potencialidades da pesquisa, e não engessá-la. Este é um primeiro aspecto a considerar, e para isto recorreremos a um exemplo já clássico para as ciências sociais brasileiras.
No período do imediato pós-Guerra, o mundo começava a tentar se recuperar do impactante trauma dos horrores promovidos pela intolerância Nazista, sistema totalitário que assombrou a Europa com sua filosofia extremamente racista, seu culto à pretensa superioridade de uma “raça ariana” e suas práticas de extermínio em campos de concentração. Os nazistas tinham sido vencidos, e a Europa e demais regiões do planeta mais indiretamente envolvidas no conflito – como as Américas, a África, e certas regiões da Ásia – respiravam ao mesmo tempo um ar de libertação e de inquietação diante dos questionamentos sociais que agora giravam como um turbilhão de inquietações em torno de diversas questões que traziam para o centro do palco os problemas relacionados às desigualdades e diferenças humanas.
Em 1951, alguns intelectuais, entre os quais o antropólogo suíço-americano Alfred Metreaux (1902-1963), idealizaram a promoção de uma pesquisa junto à UNESCO que teria por objetivo mostrar como o racismo era despropositado e como poderia haver esperanças de uma futura civilização mundial na qual convivessem seres humanos de diversas origens étnicas[1]. Mais ainda, discutia-se então a própria validade do conceito de raças, ou os limites desta conceituação. Indagava-se, principalmente, se, em um mundo recém-egresso da Segunda Grande Guerra – e que tinha a duras custas derrubado um perigoso regime de intolerâncias – se não haveria no planeta experiências sociais que pudessem inspirar o reconhecimento do extraordinário valor e benefício do convívio dos diferentes[2].
A pesquisa elegeu como foco de análise o Brasil: um país do qual se dizia que o racismo era menos intenso do que em qualquer parte do mundo, conforme sustentavam algumas obras clássicas do período de 1930 das quais a mais célebre era Casa Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freyre (1900-1987). A motivação principal era encontrar o Brasil como exemplo de sociedade anti-racista, fazer um elogio da mestiçagem e do convívio das diferenças no contexto de um pós-Guerra que tinha visto surgir com o Nazismo um extremado exemplo de in-convivência racial[3].
Era um projeto ambicioso, envolvendo diversos intelectuais importantes, e entre os contratados para esta pesquisa estavam pesquisadores da realidade social brasileira já particularmente importantes no âmbito das Ciências Humanas e das Ciências Sociais, entre os quais citaremos os nomes de Florestan Fernandes (1920-1995), Roger Bastide (1898-1974), Oracy Nogueira (1917-1996) e Thales de Azevedo (1904-1995). Conforme já ressaltamos, a hipótese de trabalho que era lançada para o grupo, para que cada um a investigasse livremente, com a devida independência, e de acordo com as singularidades de seus estudos, era a de que o Brasil poderia ser tomado como um inspirador modelo de sociedade anti-racista.
Em que pese o fato de que alguns dos autores envolvidos no projeto corresponderam às expectativas da UNESCO, como seria o caso de Thales de Azevedo, já outros dos estudiosos envolvidos no mesmo projeto – na verdade a maioria – chegariam a resultados bastante contrários às proposições sustentadas pela hipótese inicial de trabalho. Estudiosos como Florestan Fernandes e Roger Bastide chegaram precisamente a conclusões que apontavam para a existência no Brasil de formas específicas de racismo, uma espécie de “racismo à brasileira”, bem distante da antiga noção de “democracia racial”.
Encontro neste exemplo uma ilustração bastante significativa sobre o que representa a hipótese no meio científico, no que concerne ao seu caráter de instrumento provisório de trabalho. Alguns intelectuais partem de uma proposição inicial, de uma certa expectativa, de uma proposta que se apresenta a um problema específico – o do racismo – bem estabelecida sobre a idéia de que o Brasil poderia ser apontado como um modelo anti-racista, e, ao fim de seus empreendimentos, suas pesquisas os conduzem a conclusões diametralmente opostas.
Não é nosso objetivo, naturalmente, discutir estas conclusões específicas, mas apenas chamar atenção para o fato de que a hipótese, seja ela qual for, é essencialmente um instrumento provisório, podendo ou não ser confirmada, verificada ou demonstrada. A hipótese, no caso discutido, apenas ofereceu-se como elemento de movimentação inicial para a pesquisa. Não é papel da hipótese antecipar os resultados do trabalho. Sua função, na verdade, ou uma de suas diversas funções, é apenas a de colocar o pesquisador em movimento. O exemplo ilustra bem isto. Veremos em maior detalhe como as hipóteses podem ser instrumentalizadas pelas pesquisas em modelo acadêmico, e buscaremos discutir, inicialmente, de onde se origina a necessidade de sua utilização nas ciências humanas.


3. Sobre a constituição de um Problema como ponto de partida para o processo de investigação

A investigação científica tem se edificado basicamente, desde longa data, em torno da intenção de resolver “problemas” bem delineados, os quais grosso modo constituem o ponto de partida do próprio processo de investigação. Essa característica da investigação científica hoje predominante em várias partes do planeta é muito familiar aos setores das ciências exatas e naturais, mas não é de modo nenhum estranha às ciências sociais e humanas. Também as Ciências Humanas, e entre estas a História, empenham-se em discutir problemas específicos, mesmo que este problemas não apresentem soluções únicas e definitivas. Já discutimos, anteriormente, que as ciências humanas, a exemplo da História, são ciências interpretativas.
Se algumas das ciências exatas tornam-se tanto mais valorizadas quanto mais problemas parecem resolver, as ciências humanas são tanto mais relevantes quando se tornam capazes de propor novos problemas. No caso da História, desde que os historiadores assumiram o projeto de torná-la reconhecidamente uma ciência, podemos dizer que essa necessidade de problematização foi se fazendo cada vez mais característica da historiografia ocidental – sobretudo a partir do século XX, quando se superou a história narrativa ou descritiva do século XIX em favor de uma “História-Problema”[4].
Já não existe maior sentido, para a historiografia profissional de hoje, no gesto de narrar simplesmente uma seqüência de acontecimentos, ou de descrever certo cenário histórico, se esta narrativa ou esta descrição não estiverem problematizadas. Problematizar é lançar indagações, propor articulações diversas, conectar, construir, desconstruir, tentar enxergar de uma nova maneira, e viabilizar uma série de operações que se fazem incidir sobre o material coletado e os dados apurados. Problematizar, nas suas formulações mais irredutíveis, é levantar uma questão sobre algo que se constatou empiricamente ou sobre uma realidade que se impôs ao pesquisador. Problematiza-se também, é importante lembrar, no próprio momento de constituição do objeto da pesquisa, na eleição da base de fontes que será mobilizada na investigação, e em diversos outros momentos da pesquisa.
A formulação de hipóteses, no processo de investigação científica, é precisamente a segunda parte deste modo de operar inaugurado pela formulação de um problema inicial. Antes de tudo, a hipótese corresponde a uma resposta possível ao problema formulado – equivalendo a uma suposição ou solução provisória mediante à qual a imaginação se antecipa ao conhecimento, e que se destina a ser ulteriormente verificada (para ser confirmada ou rejeitada)[5]. A hipótese é na verdade um recurso de que se vale o raciocínio humano diante da necessidade de superar o impasse produzido pela formulação de um problema e diante do interesse em adquirir um conhecimento que ainda não se tem. É um fio condutor para o pensamento, através do qual se busca encontrar uma solução adequada, ao mesmo tempo em que são descartadas progressivamente as soluções inadequadas para o problema que se quer resolver.
Pode-se dizer que a Hipótese é uma asserção provisória que, longe de ser uma proposição evidente por si mesma, pode ou não ser verdadeira – e que, dentro de uma elaboração científica, deve ser necessariamente submetida a cuidadosos procedimentos de verificação e demonstração. Constitui-se em um dos elos do processo de argumentação ou investigação (na pesquisa científica ela é gerada a partir de um problema proposto e desencadeia um processo de demonstração a partir da sua enunciação).
É por isto que, etimologicamente, a palavra “hipótese” significa literalmente “proposição subjacente”. O que se “põe embaixo” é precisamente um enunciado que será coberto por outros, ou por uma série articulada de enunciados, de modo que a Hipótese desempenha o papel de uma espécie de fio condutor para a construção do conhecimento. Apesar do seu caráter provisório, a Hipótese tem sido a base da argumentação científica e desempenha uma série de funções dentro da pesquisa e do desenvolvimento do conhecimento científico, como se verá a seguir ...

 José D'Assunção Barros


Veja a continuação deste artigo em As Hipóteses nas Ciências Humanas (BARROS, José D'Assunção. Sísifo, n°7, 150-162, 2008).

O texto também dialoga com o capítulo "Hipóteses", do livro O Projeto de Pesquisa em História (BARROS, José D'Assunção. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Editora Vozes, 2005). Neste último caso, as hipóteses são trabalhadas instrumentalmente, com vistas à sua aplicação à elaboração de um Projeto de Pesquisa e ao planejamento de uma pesquisa científica, em especial na área de ciências humanas e nos estudos de História.




NOTAS:


[1] METREAUX, 1950, P.384-390.
[2] Um documento-base que registrava em 1951 o conjunto de preocupações expressas pela UNESCO foi o Statement on Race, publicado em Paris em 21 de novembro de 1951, escrito em inglês e chancelado pela United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO).
[3] Assim se expressa Marcos Chor Maio, em um artigo sobre o “Projeto Unesco”: “o Projeto Unesco foi um agente catalizador. Uma instituição internacional, criada logo após o Holocausto, momento de profunda crise da civilização ocidental, procura numa espécie de anti-Alemanha nazista, localizada na periferia do mundo capitalista, uma sociedade com reduzida taxa de tensões étnico-raciais, com a perspectiva de tornar universal o que se acreditava ser particular. Por sua vez, cientistas sociais brasileiros e estrangeiros haviam assumido como desafio intelectual não apenas tornar inteligível o cenário racial brasileiro, mas também responder à recorrente questão da incorporação de determinados segmentos sociais à modernidade” (MAIO, 1999, p.1).
[4] A expressão “história-problema” adquiriu cidadania no vocabulário historiográfico a partir dos polêmicos artigos de Lucien Febvre (1858-1976) e do programa de ação da chamada Escola dos Annales. Também os novos setores marxistas da historiografia, e de modo geral toda a comunidade historiográfica européia e das três Américas, adotaram a nova perspectiva.
[5] Existem nuances importantes entre as expressões que são habitualmente utilizadas para se referir ao teste sistemático das hipóteses. Nas ciências exatas, usa-se mais a expressão “verificar as hipóteses”, e para alguns problemas específicos é possível chegar a resultados tão objetivos que se pode mesmo dizer que a hipótese foi “provada”. Nas ciências humanas, contudo, já não se tem nos dias de hoje senão a pretensão de produzir interpretações sobre os processos examinados. Um historiador, por exemplo, não almeja chegar a uma verdade absoluta. Por isso, usa-se aqui mais a expressão “demonstrar as hipóteses”, nesta e em outras ciências sociais e humanas que são essencialmente interpretativas, e que apenas pretendem demonstrar que uma certa teoria ou interpretação é sustentável como uma possibilidade passível de ser pensada como verdadeira.

Micro-História


Micro-História: definições e confusões em torno da palavra


A Micro-História é um campo relativamente recente na Historiografia, e ainda hoje gera muitas polêmicas com relação às suas possibilidades de definição. Uma questão complicadora é que a Micro-História começou a desabrochar com um grupo muito específico de historiadores italianos, que possui, até os dias de hoje, publicação própria (os Quaderni Storici), e por isto não é raro que se confunda a Micro-História – enquanto nova possibilidade de abordagem historiográfica, ou mesmo como um "campo histórico" específico – com este grupo italiano que conforma apenas uma escola histórica muito específica. Mas veremos a seguir que a Micro-História merece ser tratada de maneira mais ampla, como um novo âmbito de possibilidades historiográficas - como um "campo histórico" -, e não como uma corrente ou escola dentro da historiografia. O olhar micro-historiográfico, deve-se dizer, pode ser conectado aos mais distintos aportes teóricos, e é assim que ele tem aparecido inclusive na historiografia brasileira das últimas décadas. Deste modo, ao nos perguntarmos se a Micro-História é uma escola de historiadores (como a Escola dos Annales, ou a Escola Inglesa do Marxismo, ou se é algo mais amplo - um "Campo Histórico" que é definido por uma abordagem específica da História que já discutiremos - prefiro seguramente essa segunda respsta. A Micro-História é um "campo histórico" - uma modalidade historiográfica que propõe uma abordagem específica, e que pode ser compartilhada por todos os historiadores que se aproximem da sua perspectiva metodológica.

Avançando no âmbito de confusões que podem surgir a partir da expressão "Micro-História", há uma particularmente absurda que é a que ocorre quando se pensa que a micro-história corresponde a uma historiografia que faz recortes pequenos no tempo (trabalhando com recortes de tempo muito curtos, em oposição aos recortes mais extensos). Isso não tem qualquer fundamento. O fato de um historiador empreender um recorte de tempo mais curto (2, 5 ou 10 anos, ou qualquer outro), diz respeito ao seu desejo de empreender um mergulho de profundidade. É muito comum que, em monografias e teses, o historiador trabalhe com recortes pouco extensos de tempo, de modo a que possa dar um maior mergulho de profundidade no seu problema historiográfico. Mas a preocupação em limitar mais o recorte monográfico de tempo histórico - evitando recortes muito extensos que se tornem inviáveis - nada tem a ver (não necessariamente) com a abordagem historiográfica. Recortar o tempo em um período mais curto é uma decisão monográfica muito comum, independente da abordagem historiográfica que será utilizada.

Existe ainda outra confusão absurda, e totalmente descabida, que se dá quando se confunde "Micro-História" com "História em Migalhas". A expressão "história em migalhas" surgiu nos finais da década de 1980, para designar depreciativamente uma moda editorial que favorecia a publicação de temáticas que a muitos pareciam irrelevantes, como por exemplo alguns temas relacionados a uma antropologia histórica mais factual e descritiva que estudava temas muito específicos sem uma ligação maior com grandes problematizações históricas. Por exemplo, digamos que um historiador desejasse estudar a "história das canetas-tinteiro", ou a "história dos barquinhos de papel", ou a "história do pão de queijo" - ou a história de uma pequena curiosidade qualquer - e não se preocupasse em ligar o seu tema a um contexto social mais amplo, a problematizações historiográficas, ficando a apenas em um plano descritivo e que meramente satisfaria curiosidades de menor relevância. Esse tipo de perspectiva, que a muitos pareceu uma história descartável e alienante, passou a ser chamado por certos autores de "história em migalhas". O historiador François Dosse, crítico desta moda editorial, chegou a escrever um livro crítico chamado "A História em Migalhas". Este culto ao pequeno e ao irrelevante, à mera curiosidade de antiquário, à curiosidade pela curiosidade, não tem qualquer relação com a "Micro-História". No entanto, não é propriamente raro que alguém acredite que a Micro-História interessa-se pelos pequenos temas - e, pior, que se interessa pelos pequenos temas de uma maneira pequena não problematizada. Já veremos que esta confusão é igualmente descabida.

Outra confusão sem nenhum fundamento que algumas vezes se faz - por mais estranha que pareça quando se conhece verdadeiramente a proposta da Micro-História - surge quando se relaciona equivocadamente a História Regional (ou a História Local) e a Micro-História, apesar de estes serem campos radicalmente distintos no que concerne às suas motivações fundadoras. A História Regional, ou a História Local, podem (ou não) se relacionar à Micro-História, mas não necessariamente. Pode ser que uma certa pesquisa histórica possa ser classificada como "História Regional" no que se refere ao recorte de espaço que empreende, e que seja ao mesmo tempo uma "Micro-História" por trabalhar com a escala aproximada de observação. Isso pode ocorrer; mas não ocorre necessariamente. "História Local" (ou "História Regional") são coisas distintas de "Micro-História". Gostaria de me deter mais neste ponto de comparação. Vejamos a seguir, para diferenciá-la mais claramente da Micro História, do que se trata quando se fala em “História Regional”.



História Regional, ou História Local


Quando um historiador se propõe a trabalhar dentro do âmbito da História Regional (ou da História Local), ele mostra-se interessado em estudar diretamente uma região específica (ou, melhor dizendo, uma determinada espacialidade). O espaço regional, é sempre importante destacar, não estará necessariamente associado a um recorte administrativo ou geográfico, podendo se referir a um recorte antropológico, a um recorte cultural ou a qualquer outro recorte proposto pelo historiador de acordo com o problema histórico que irá examinar. Mas, de qualquer modo, o interesse central do historiador regional é estudar especificamente este espaço, ou as relações sociais que se estabelecem dentro deste espaço, mesmo que eventualmente pretenda compará-lo com outros espaços similares ou examinar em algum momento de sua pesquisa a inserção do espaço regional em um universo maior (o espaço nacional, ou uma rede comercial, por exemplo).

Que a região é uma construção do historiador, do geógrafo ou do cientista social que examina uma determinada questão, isto já o sabem de longa monta os historiadores regionais. A região não existe obviamente como espaço pré-estabelecido, ela é construída dentro das coordenadas de uma determinada pesquisa ou de uma certa análise sociológica ou historiográfica. Por isto, aliás, é preciso que o pesquisador – ao delimitar o seu espaço de investigação e defini-lo como uma ‘região’ – esclareça os critérios que o conduziram a esta delimitação. Posto isto, é óbvio que o ‘espaço’, seja este definido como espaço físico ou como espaço social, é uma noção fundamental dentro deste campo de estudos que pode ser enquadrado como História Regional. Veremos a seguir que, enquanto a História Regional relaciona-se ao conceito de "região" - e a História Local ao conceito de "lugar" - já a Micro-História está relacionada a um conceito bem distinto, o de "escala".



Micro-História


Enquanto a História Regional corresponde a um domínio ou a uma abordagem historiográfica que foi se constituindo em torno da ideia de construir um espaço de observação sobre o qual se torna possível perceber determinadas articulações e homogeneidades sociais (e a recorrência de determinadas contradições sociais, obviamente), já a Micro-História corresponde a um campo histórico que se refere a uma coisa bem distinta: a uma determinada maneira de se aproximar de uma certa realidade social ou de construir o objeto historiográfico. A Micro-História, sustentaremos aqui, relaciona-se a uma abordagem, mais do que a qualquer outra coisa.

Antes de mais nada é preciso deixar claro que a Micro-História não se refere necessariamente ao estudo de um espaço físico reduzido ou delimitado, embora isto possa até ocorrer. O que a Micro-História pretende é uma aproximação na escala de observação do historiador com o intuito de se perceber aspectos que, de outro modo, passariam desapercebidos. Para termos uma boa imagem metafórica, o micro-historiador é um historiador que traz consigo uma poderosa lente de aumento; ele trabalha com uma escala de observação e com um nível de atenção e observação que fazem lembrar a prática dos investigadores criminais ou dos microbiologistas.

Quando um micro-historiador estuda uma pequena comunidade, pois isto pode eventualmente ocorrer, ele não estuda propriamente a pequena comunidade, por ela mesma, mas estuda através da pequena comunidade (não é por exemplo a perspectiva da História Local, que busca o estudo da realidade micro-localizada por ela mesma). A comunidade examinada pela Micro-História pode aparecer, por exemplo, como um meio para se atingir a compreensão de aspectos específicos relativos a uma sociedade mais ampla. Da mesma forma, pode-se tomar para estudo uma ‘realidade micro’ com o intuito de compreender certos aspectos de um grande processo de centralização estatal que, em um exame encaminhado do ponto de vista da macro-história, passa-riam certamente desapercebidos.

O objeto de estudo do micro-historiador não precisa ser, desta maneira, o espaço micro-recortado. Pode ser uma prática social específica, a trajetória de determinados atores sociais, um núcleo de representações, uma ocorrência (por exemplo, um crime) ou qualquer outro aspecto que o historiador considere revelador em relação aos problemas sociais ou culturais que está disposto a examinar. Se ele elabora a biografia ou a “história de vida” de um indivíduo (e freqüentemente escolherá um indivíduo anônimo) o que o estará interessando não é propriamente biografar este indivíduo, mas sim os aspectos que poderá perceber através do exame micro-localizado desta vida. O indivíduo, é o que precisa ser entendido aqui, será para o micro-historiador apenas um caminho para entender aspectos sociais mais amplos.

Da mesma maneira, assim como a Micro-História não deve ser confundida com a História Regional ao examinar eventualmente um espaço micro-recortado, também não deve ser confundida com o chamado ‘estudo de caso’ ao estudar uma prática social ou uma ocorrência, e nem ser confundida com a Biografia Histórica ao examinar uma “vida” ou uma trajetória individual. Sempre que toma estes objetos – micro-localidades, práticas sociais, ocorrências históricas, trajetórias individuais entrecruzadas ou vidas individuais – o micro-historiador está no encalço de algo mais do que estes objetos em si mesmos. A prática micro-historiográfica não deve ser definida propriamente pelo que se vê, mas pelo modo como se vê.

Para utilizar uma metáfora conhecida, a Micro-História propõe a utilização do microscópio ao invés do telescópio. Não se trata, neste caso, de depreciar o segundo em relação ao primeiro. O que importa é ter consciência de que cada um destes instrumentos pode se mostrar mais apropriado para conduzir à percepção de certos aspectos do universo (por exemplo, o espaço sideral ou o espaço intra-atômico). De igual maneira, a Micro-História procura enxergar aquilo que escapa à Macro-História tradicional, empreendendo para tal uma ‘aproximação da escala de observação’ que não poupa os detalhes e que investe no exame intensivo de uma documentação. Considerando os exemplos antes citados, o que importa para a Micro-História não é tanto a ‘unidade de observação’, mas a ‘escala de observação’ utilizada pelo historiador, o modo intensivo como ele observa, e o que ele observa.

A ideia de que, em muitos casos, a Micro-História examina um campo ou um aspecto reduzido para enxergar mais longe, ou para perceber elementos que escapariam à macro-perspectiva tradicional, merece alguns esclarecimentos adicionais. Poderíamos utilizar aqui uma nova metáfora: a de que o micro-historiador examina “uma gota d’água para enxergar algo do oceano inteiro”, contanto que tenhamos uma compreensão muito precisa sobre que esta imagem significa. Suponhamos um oceanógrafo que estivesse investindo em uma possibilidade como esta. Ele se propôs a buscar compreender algo do oceano inteiro a partir de uma minúscula gota d’água extraída deste oceano – será isto possível? A resposta depende obviamente do problema científico que se pretende examinar. Não é possível compreender a fauna marítima examinando uma simples gota do oceano (um peixe não cabe em uma gota d’água). Mas é possível estudar a composição molecular da água a partir de qualquer gota (com exceção, talvez, das gotas extraídas de áreas que sofreram vazamentos de óleo nos acidentes ecológicos que ocasionalmente têm perturbado os noticiários recentes). Não está sendo defendida aqui nenhuma proposta de que este macrocosmos que é o oceano está essencialmente contido neste microcosmos que é a gota d’água, ou de que a sociedade inteira está contida em cada um dos seus fragmentos passíveis de serem examinados. Também não se trata de dizer que a micro-análise seleciona um fragmento para amostra (algumas gotas do oceano, por exemplo), para depois proceder a uma generalização das observações com o fito de concluir que o que aconteceu a uma ou mais gotas d’água acontecerá a todas que compõem o oceano (o que seria o método empírico-indutivo tradicional). Na verdade, a Micro-História não trabalha propriamente com generalizações deste tipo. Pelo contrário, as motivações que produziram este novo tipo de abordagem historiográfica são até mesmo um pouco avessas seja às grandes generalizações (tão típicas das antigas utopias historiográficas da “história total”), seja à ideia de que a gota contém o oceano ou de que o fragmento social contém a sociedade). De que se trata então?

A verdade é que a Micro-História é uma opção metodológica, uma postura historiográfica, uma "abordagem", mais propriamente falando. Ela requer uma atenção incomum aos detalhes - não porque os detalhes são curiosos, mas porque os detalhes são reveladores . Conforme veremos no texto que propomos para dar continuidade a estas reflexões, não é de causar surpresa que certas fontes atraiam especial interesse dos micro-historiadores, como por exemplo os processos criminais e inquisitoriais. Estas fontes, em particular, permitem uma análise intensiva - onde tudo pode ser revelador - e ao mesmo tempo são espaços nos quais se confrontam diversas vozes sociais. Nos processos criminais, é dada uma voz aos acusadores, ao réu, às testemunhas, aos técnicos que proporcionam perícias e análises setoriais, e à própria vítima. Mesmo quando um corpo já não pode falar na sua vida comum, ele deve falar aos micro-historiadores, assim como pôde falar para os peritos na investigação criminal.

Uma gama de muitas outras fontes particularmente adaptáveis ao tratamento micro-historiográfico também pode ser mencionada - como os diários, que exatamente por não terem sido escritos para serem expostas, podem revelar aspectos ocultos da vida vida comum, ou como as correspondências, os relatos de viagem, e muitas outras.

O que veremos a seguir, no artigo que prossegue com nossos esclarecimentos sobre a Micro-História, é que o micro-historiador vale-se de suas fontes para tentar enxergar a complexidade que pode estar oculta atrás da simplicidade dos detalhes. O olhar da Micro-História é intensivo, detalhista, atento às complexidades, àquilo que destoa do comum, mas também ao detalhe que é de tal maneira já naturalizado por todos, que ninguém mais o percebe como um detalhe revelador. Adentremos, a seguir, os aspectos metodológicos pertinentes à Micro-História ...


José D'Assunção Barros



Leia a continuação deste texto em Sobre a Feitura da Micro-História (Opsis, vol.7, n°9, 2007).



O presente texto também se encontra, em outra versão, mais aprofundada, em um dos capítulos do livro O Campo da História (BARROS, José D'Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 8a edição).

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Outras referências bibliográficas:

BARROS, José D'Assunção. "Micro-História" in O Campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 8a edição. p.152-179.

BARROS, José D'Assunção. "O olhar micro-historiográfico no Brasil". Revista do IHGB, a-165, n°424, jul/set. 2004.

GINZBURG,Carlo. “O inquisidor como antropólogo” In A Micro História e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1991 [original: 1989]

GINZBURG, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” In Mitos, Emblemas, Sinais, São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.143-179

GINZBURG,Carlo. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987 [original: 1975]

LEVI, Giovanni. "Sobre a Micro-História" in BURKE,Peter (org.) A Escrita da História - novas perspectivas. São Paulo: Unesp. 1992. p.133-161.

LIMA, Henrique Espada. A Micro-História Italiana - escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

PESAVENTO, Sandra. “Esta história que chamam micro” In: Questões de teoria e metodologia da história. Porto Alegre: Edurgs, 2000, p. 228-229.

REVEL, Jacques (olrg.). Jogos de Escala - a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.


José D'Assunção Barros
E-mail: jose.d.assun@globomail.com

domingo, 14 de junho de 2020

Memória e História


História e Memória: algumas relações possíveis

História e Memória - e aqui será preciso considerar tanto a possibilidade de se falar em uma "Memória Coletiva", como na situação mais corrente da "Memória Individual" - associam-se de muitas maneiras. Por um lado, a memória pode se tornar objeto para a ciência histórica. Como historiadores, podemos estudar os modos como uma sociedade produz memória, e, ainda mais especificamente, os modos como uma determinada sociedade produz uma memória coletiva relacionada aos acontecimentos históricos que fazem parte da sua construção identitária.

Por outro lado, a História produzida pelos historiadores também pode tomar a memória como fonte histórica. Aqui se abrem duas possibilidades, Os historiadores podem tomar como fontes históricas tanto as fontes produzidas pela Memória Coletiva - os chamados lugares de memória, por exemplo - como podem tomar como fontes históricas os depoimentos produzidos pela chamada História Oral, da qual falaremos na segunda parte deste texto.

Por fim, se a História pode se valer na Memória tanto como fonte como objeto, esta relação pode ser invertida, pois a Memória também pode ser construída a partir de representações específicas dos acontecimentos históricos (a história - campo de acontecimentos). Neste último caso, é importante termos em vista que uma coisa é a História produzida pelos historiadores - uma História produzida cientificamente, a partir de regras bem definidas, de análises críticas das fontes, de aportes teóricos aceitos pela comunidade historiográfica, e de uma busca de precisão com relação aos fatos a serem considerados. Outra coisa é a História produzida pela memória popular, pelos memorialistas (autores que trabalham com memória histórica mas sem serem historiadores), pelas instituições estatais que criam personagens para serem emulados ou que enaltecem oficialmente eventos para serem lembrados em comemorações.



A Memória Individual

A memória coletiva precisa ser bem diferenciada da memória individual, e já veremos como distinguir uma da outra. Contudo, ambas possuem algo em comum: por um lado são fundadas em lembranças e esquecimentos; por outro lado, nenhuma destas memórias é estática, e ambas devem ser compreendidas como processos que são continuamente reatualizados de modo a redefinir permanentemente a dialética da lembranças e esquecimentos. Tanto uma como outra destas memórias, além disso, constroem e reconstroem narrativas ao longo de todo o período em que perduram, de modo que não podemos entendê-las, em nenhuma hipótese, como meros "depósitos" de lembranças ou de informações. Vamos tentar compreender, antes de mais nada, o funcionamento da Memória Individual, e poderemos a partir daí estabelecer algumas analogias em relação à Memória Coletiva.

De todas as coisas que aconteceram em sua vida, cada indivíduo seleciona - através de um processo complexo e inconsciente - apenas algumas para serem lembradas. Podemos nos esquecer de algumas coisas porque elas nos traumatizaram e não poderíamos nos lembrar diretamente delas sem grandes sofrimentos: consistindo este em um processo psicológico chamado de recalque, sendo que habitualmente os eventos traumáticos que foram selecionados para serem esquecidos ou para serem ocultados no fundo do inconsciente acabam se conservando sob a forma de fobias, inibições inexplicáveis, ou mesmo processos somáticos diversos. O esquecimento de eventos através do recalque é, neste caso, um mecanismo de defesa psicológica do indivíduo, mas que pode acabar por produzir outros tipos de distúrbios que frequentemente são tratados por processos de terapia. Posto, isto, o mecanismo do recalque está muito longe de constituir a lógica que rege o processo de esquecimento. Na maior parte das vezes, esquecemo-nos de um grande número de coisas porque o cérebro humano individual apresenta limitações físicas muito claras, e não poderia conservar mesmo todas as lembranças possíveis. A capacidade de armazenamento de informações no cérebro é limitada, como também ocorre, aliás, com os próprios computadores, e por isso o sistema precisa decidir a cada instante o que será lembrado e o que será esquecido. Tudo aquilo que é considerado pouco relevante pelo sistema cerebral de memória seria a priori esquecido, ao mesmo tempo em que são conservadas muitas coisas que são avaliadas por este sistema como relevantes, úteis ou importantes para que o indivíduo enfrente com sucesso situações similares. Aprendemos com nossos erros, de modo a não cometê-los novamente no futuro, porque estes erros foram selecionados pelo sistema de memória para serem lembrados. Devo ressaltar ainda que, embora exista uma lógica de lembranças e esquecimentos que devem (ou deveriam) favorecer a vida do indivíduo, a memória dos indivíduos humanos também pode ser habitada por muitos entulhos e coisas sem importância - coisas que realmente não são importantes, mas que por algum motivo foram selecionadas como lembranças e se depositaram no repertório básico de conteúdos que são constantemente lembrados pelo indivíduo. Deste modo, a memória individual pode lidar com coisas importantes e relevantes, mas também com coisas sem importância (e isso, aliás, também irá ocorrer com a memória coletiva, conforme veremos mais adiante).

É importante ter em vista, ainda, que a memória humana não é estática, e tampouco é precisa como a memória de um computador. A memória de um indivíduo, embora se baseie em lembranças básicas que foram selecionadas para o seu fundo de memória, está sujeita a permanentes processos de reconstruções ao longo da vida de um indivíduo, e também está sempre incontornavelmente atravessada por imprecisões que podem fazer com que, em momentos diversos, algumas informações se misturem e que a datação de eventos se confunda. Todo indivíduo, ao longo de sua vida, vai reconstruindo a sua memória de alguma maneira, e muitas vezes em função de processos que ocorrem a cada nova etapa de sua vida. Nesta reconstrução, algumas lembranças que estavam registradas a nível inconsciente podem ser convocadas, e outras podem ser empurradas para o inconsciente. Algumas lembranças e informações também podem ser distorcidas, ou submetidas a falsas associações e conexões com outras lembranças. Além de tudo, como já se disse, é preciso lembrar que a memória não é simplesmente um depósito de informações prontas para serem utilizadas, mas que também constitui um conjunto de narrativas que vão sendo produzidas e reconstruídas pela mente do indivíduo. As informações , deste modo, vão sendo conectadas na mente do indivíduo de modo a produzir narrativas que ele conta para si mesmo e para os outros, e nas quais o indivíduo acredita sem duvidar em nenhum instante que sejam suas vivências reais, mesmo que estas narrativas estejam atravessadas por eventuais imprecisões, distorções e falsas correlações, ao lado dos aspectos verdadeiros que também são trazidos pela memória.

Reconstruções inconscientes e semiconscientes da memória ocorrem todo o tempo na vida de qualquer indivíduo. Por exemplo, digamos que um indivíduo redefiniu o seu círculo de amizades e relacionamentos em um período recente. Inconscientemente, ele pode ser levado de alguma maneira a refabricar algumas de suas memórias, amenizando lembranças ruins relacionadas aos indivíduos que agora se tornaram seus amigos; em contrapartida, pode começar a se lembrar de adversidades ou aspectos negativos relativos às suas relações, no passado, com indivíduos que agora se tornaram seus inimigos. Ou seja, as reconstruções da memória relativa ao passado também atendem a demandas do presente. Com relação a informações, podem ocorrer também distorções de todos os tipos. A lembrança baseada em eventos que realmente foram vividos pode se intermesclar - no processo de reconstrução de memória vivido por um indivíduo - com "lembranças inventadas". Não é incomum, por exemplo, que um indivíduo ouça alguma narrativa que se refere a ele, de um antigo parente ou amigo, e que apenas em função de ter ouvido esta narrativa passe "a se lembrar" daquilo que lhe foi dito, mesmo que tais coisas não tenham ocorrido. O cérebro humano é em boa parte sugestionável, e isso também atua na reconstrução da memória, sem que o próprio indivíduo esteja consciente disto. Por motivos como estes, a memória de um indivíduo não é plenamente confiável. Mesmo que a memória traga registros de coisas que efetivamente foram vividas, pode também vir entremeadas com aspectos que não correspondam a nenhuma realidade efetivamente vivenciada pelo indivíduo; e mesmo os elementos reais que são trazidos pela memória podem ser ressignificados de muitas maneiras. A memória pode trair o indivíduo a seu próprio favor (ou contra ele mesmo), e produzir distorções de todos os tipos, esquecimentos vários, ênfases imprevistas, além de ajudar a conformar narrativas que revelam pontos de vista e interferências do presente. Toda esta instabilidade e imprecisão à qual está sujeita a memória de um indivíduo traz implicações para a prática da História Oral, que, conforme veremos mais adiante, é a modalidade historiográfica que colhe depoimentos de indivíduos para examinar certos processos históricos.

Com tudo isso, e antes de passar ao próximo item, não queremos dizer que a memória dos indivíduos é inútil aos historiadores. Pelo contrário, a História Oral funda-se exatamente na possibilidade de provocar depoimentos de indivíduos que presenciaram certos acontecimentos ou vivenciaram determinados processos históricos, e cujas memórias passam a ser trabalhadas pelo historiador como fontes históricas. O que ocorre, neste caso, é que - por mais que a memória de um indivíduo esteja sujeita a imprecisões, distorções, reconstruções inconscientes e semiconscientes, sem contar a interferência de perspectivas pessoais que afetam o modo de ver e de se lembrar sobre as coisas - ainda assim há inúmeras técnicas e metodologias que fazem dos depoimentos individuais uma fonte de grande riqueza para os historiadores.

Ao trabalhar com a memória individual humana para examinar determinado processo histórico, é óbvio que o historiador não irá confiar acriticamente no depoimento de um único indivíduo, e basear todas as suas conclusões historiográficas neste depoimento isolado. Em geral, a validade do trabalho histórico ou antropológico com depoimentos é fortalecida pelo trabalho comparativo. O historiador pode trabalhar com muitos depoimentos e compará-los - não apenas para checar a validade objetiva de certas informações, mas também para contrastar diferentes pontos de vista e confrontar distintas construções narrativas sobre os mesmos acontecimentos. O depoimento de um indivíduo também pode ser matizado com a consulta a outros tipos de fontes, como documentos escritos, relatórios, jornais ou quaisquer outras.

Além disso, o mais importante é situar cada depoimento no interior de um lugar social e interindividual de produção de memória. Cada indivíduo que dá uma entrevista a um historiador precisa estar, preferencialmente, classificado no interior de um perfil social que o aproxima de outros indivíduos e que o contrasta com outros tantos, pertencentes a outros perfis. Ao examinar certo processo histórico, um historiador pode coletar entrevistas, por exemplo, de um universo maior de indivíduos que, não obstante, pode ser previamente subdividido em diferentes subconjuntos relacionados a diferentes perfis socioculturais. É imprescindível situar cada indivíduo que presta depoimentos no interior de uma identidade complexa que inclui sua classe social, faixa etária, gênero, categoria profissional, grau de escolaridade, ideologia declarada, posição em relação ao problema examinado, e inúmeros outros aspectos. Dependendo do problema histórico examinado, também pode funcionar o agrupamento de depoentes em diferentes grupos ou perfis que revelarão diferentes posições sociais ou culturais diante de acontecimentos ou processos históricos específicos.

Ao pensar a inserção social de cada indivíduo, o historiador pode analisar previamente as condições sociais e circunstâncias deste produtor de discursos que é o indivíduo entrevistado, e isso já irá ajudá-lo de saída a se colocar criticamente diante daquilo que será dito. Depoimentos fornecidos por entrevistados agrupados no mesmo perfil também podem ser comparados, e isso levará o historiador a perceber quando certas percepções e narrativas são efetivamente compartilhadas por muitos indivíduos com o mesmo perfil, e quando, ocasionalmente, são produtos de uma narrativa pessoal que foi muito distorcida pelas imprecisões e redefinições de memória de um único indivíduo. Trabalhar com grupos de entrevistados pode proporcionar um salto da memória individual para a memória coletiva. Isso não significa, é claro, a depender do problema histórico em estudo, que não sejam úteis entrevistas individualizadas.

Com tudo isto, quisemos apenas mostrar que - contra todas as imprecisões e reconstruções que possam afetar cada memória individual - os depoimentos obtidos através de entrevistas podem ser, sim, extremamente úteis para os historiadores. A História Oral funda-se nesta possibilidade.



Memória Coletiva

As memórias coletiva e individual, embora sejam muito diferentes uma da outra em alguns aspectos, possuem alguns elementos em comum. Para começar, ambas se baseiam em lembranças e em esquecimentos. Este conteúdo, além disso, é mutável, pois tanto na memória individual como na memória coletiva as lembranças e esquecimentos podem ser reatualizados ou redefinidos: elementos que dormiam no fundo do inconsciente de um indivíduo, ou que estavam esquecidos no fundo dos arquivos e registros de uma sociedade, podem ser convocados em certo momento, e outros podem ser relegados ao esquecimento. Tanto na memória individual como na memória coletiva o presente pode pressionar a memória a redefinir o passado que será lembrado pelo indivíduo ou pela sociedade. Ao mesmo tempo, em ambos estes tipos de memória, mesmo considerando um mesmo repertório de lembranças e esquecimentos e supondo que ele se conserve o mesmo, este repertório é constantemente ressignificado. Isso se dá porque nem a memória individual nem a memória coletiva se resume às informações e às unidades de lembrança e esquecimento. A Memória é também um ato de construir e reconstruir narrativas. Com os mesmos elementos a serem lembrados, novas narrativas podem ser reconstruídas, tanto pelo indivíduo que se empenha em se lembrar do seu passado, como pelas sociedades que reatualizam a sua própria história e lembrança coletiva dos eventos que vivenciaram.

Estes aspectos são comuns às memórias individual e coletiva: dialética entre lembranças e esquecimentos; reatualização constante e instabilidade relativa do seu conteúdo; ressignificações afetivas pressionadas pelo presente; reorganização do conteúdo memorável em novas narrativas; instrumentalização da memória para a vida presente do indivíduo ou da sociedade. Não obstante, memória individual e memória coletiva também diferem uma da outra em muitos aspectos. O mais evidente deles é o da perecibilidade. A memória individual é inevitavelmente perecível: está sujeita a desaparecer assim que o indivíduo não estiver mais presente. Quando muito, podem sobreviver à morte do indivíduo alguns registros elaborados em certo momento temporal de seu processo de memória viva, nos casos em que este indivíduo tenha gravado depoimentos em mídias diversas, ou escrito suas memórias em algum texto. Mas estes registros, deve se compreender bem, não são a Memória Individual em si mesma, mas apenas a manifestação desta memória em um certo momento no tempo e no espaço. A Memória - tanto a Individual como a Coletiva - não é apenas um repertório de lembranças e esquecimentos, mas sim um processo vivo, que redefine as próprias lembranças e esquecimentos, que constrói narrativas durante todo o tempo de vida do indivíduo ou da sociedade. A Memória é esta constante reconstrução, e não o repertório de lembranças que estão disponíveis em algum momento contra tudo aquilo que no momento está esquecido. Por isso, se um indivíduo escreve as suas memórias, ele está apenas elaborando uma fotografia ou filme - aqui utilizados metaforicamente - sobre o que ele decidiu lembrar e divulgar a seus leitores a partir dos elementos de memória que tinha à sua disposição naquele momento. Vinte anos depois, se ele fosse escrever um livro de memórias sobre os mesmos acontecimentos, este já seria um outro livro - um outro filme ou uma outra fotografia - pois agora ele se lembraria de outras coisas e, mesmo que se lembrasse das mesmas coisas, construiria novas narrativas pressionado pelo seu novo presente. Quanto à Memória - como processo vivo e permanentemente reatualizado - o indivíduo pode vivê-la e vivenciá-la, mas não transmiti-la a outros (pelo menos não no atual estágio da tecnologia humana). Quando o indivíduo morre, morre com ele a sua memória. Podem ficar alguns registros produzidos por esta em algum momento; mas a memória mesmo, esta se foi.

Com a Memória Coletiva, entretanto, dá-se algo distinto. Os indivíduos irão se suceder uns aos outros através da sucessão das diversas gerações de indivíduos que compõem uma determinada sociedade. A Memória produzida coletivamente por estes indivíduos - de maneira diversificada e polifônica, englobando narrativas variadas, e algumas antagônicas por trazerem os pontos de vista de diferentes grupos sociais - esta permanecerá, para além da morte de cada indivíduo que contribuiu para produzi-la. A Memória Coletiva preserva-se, para além do desaparecimento de cada indivíduo, como processo. Os registros específicos podem desaparecer por decisões da coletividade ou de grupos interindividuais, ou mesmo de agentes individuais isolados, mas o processo social de produção da memória irá prosseguir. Uma estátua de um indivíduo que um dia foi enaltecido pode ser derrubada, ou transferida de um lugar central para uma praça periférica; e um incêndio pode destruir documentos, ao mesmo tempo em que um decreto governamental pode se empenhar em fabricar um novo herói. Ou seja, os registros específicos podem mudar, podem ser relegados ao esquecimento ou mesmo serem destruídos, mas o processo de permanente reconstrução da memória coletiva prossegue para além das vidas individuais e mesmo para além das decisões institucionais e governamentais. A Memória Coletiva de uma sociedade, enfim, só poderia desaparecer se a própria sociedade desaparecesse, e não deixasse sobreviventes. Neste caso, restariam possivelmente os registros deixados por esta Memória Coletiva - sob a forma de cultura material, talvez transformada em ruínas; de documentos, talvez deslocados para um arquivo; de lendas e cultura oral que talvez sobreviva em outras sociedades; de piadas, que continuarão a ser contadas muito longe dali; e assim por diante. De todo modo, à parte a situação de desaparecimento radical de toda uma coletividade, a Memória Coletiva - ou o processo de produzir memória coletiva - tende a se perpetuar e não está adstrito à vida de cada indivíduo que fez parte em determinado período de uma comunidade.

Feitas estas observações iniciais sobre as semelhanças e distinções entre a Memória Individual e a Memória Coletiva, podemos passar a uma reflexão sobre a sistematização do próprio conceito de "memória coletiva", que também tem a sua própria história. Antes de discutir o conceito mais sistematizado de "memória coletiva", é importante, aliás, dar a perceber que a noção de que existe uma memória coletiva - e de que esta memória coletiva é importante para os rumos de uma sociedade - é tão antiga quanto a própria história da humanidade. Nos primeiros impérios, aqueles que os geriram já tinham clareza de que era importante exercer um poder político sobre a Memória Coletiva. Alguns dos antigos imperadores romanos, por exemplo, costumavam destruir as estátuas que enalteciam os seus antecessores, pelo menos as daqueles que não faziam parte de sua linhagem ou círculo de alianças geracionais. Desde os primeiros estados-nações, há o empenho em financiar a escrita de livros didáticos que selecionam determinadas lembranças e promovem certos esquecimentos, e com isto tenta-se interferir na moldagem de uma memória coletiva. Desde o período neolítico, e mesmo desde o paleolítico, tribos diversas se preocuparam em designar membros da comunidade para funcionarem como agentes reconhecidos da memória coletiva, que deveria se expressar na transmissão oral de certas narrativas para as gerações seguintes. Estes exemplos, e muitos outros, mostram que desde há muito tempo os governantes, líderes - e a própria comunidade como um todo - possui uma noção menos ou mais clara a respeito deste processo que constitui a Memória Coletiva. Os empenhos políticos em controlar a memória coletiva também são muito antigos. No entanto a reflexão mais propriamente científica sobre a Memória Coletiva é bem mais recente.

Nas ciências humanas, o conceito de memória coletiva já vem sendo desenvolvido desde a primeira metade do século XX. Maurice Halbwachs - um dos pioneiros no estudo historiográfico e sociológico da memória - foi um dos primeiros a propor que, no espaço interdisciplinar relacionado às ciências humanas, se ultrapassasse o estranhamento original gerado a partir da ideia, bem presente no senso comum, de que uma faculdade como a Memória só poderia “existir e permanecer na medida em que estivesse ligada a um corpo ou a um cérebro individual” (HALBWACHS, 2006, p.71). Sua perspectiva era a de que as lembranças poderiam ser organizadas de duas maneiras: agrupadas em torno do ponto de vista de uma só pessoa, ou se distribuindo no interior de uma determinada sociedade. Os indivíduos, desse modo, poderiam participar destes dois tipos de memória, e no caso da Memória Coletiva seriam capazes de se comportar como membros de um grupo de modo a evocar lembranças interpessoais.

Halbwachs já refletia nesta época tanto sobre o contraste entre os dois tipos de memória - individual e coletiva - como sobre a interação e mútua interpenetração de ambas em certas ocasiões, fazendo notar que mesmo a memória individual podia reforçar algumas de suas lembranças, ou mesmo preencher lacunas, apoiando-se na memória coletiva (2006, p.71). De igual maneira, a Memória Coletiva poderia conter, em certo sentido, as memórias individuais, mas não se confundiria com elas, ou sequer com o seu somatório, pois evoluiria "segundo suas próprias leis", para utilizar uma expressão do próprio Maurice Halbwachs (2006, p.72). A contribuição ímpar do sociólogo francês estava em dar a perceber que – longe de ser processo que apenas se dá no cérebro humano a partir da atualização de vestígios que foram guardados neurologicamente pelos indivíduos - havia uma dimensão social tanto na Memória Individual como na Memória Coletiva. Isto porque mesmo o indivíduo que se empenha em reconstituir e reorganizar suas lembranças irá inevitavelmente recorrer às lembranças de outros, e não apenas olhar para dentro de si mesmo em conexão com um processo meramente fisiológico de reviver mentalmente fatos já vivenciados. Isso sem deixar de considerar o que é ainda mais importante: a memória individual requer como instrumental palavras e ideias, e ambas são produzidas no ambiente social. Dito de outra forma, se no caso da Memória Individual são os indivíduos que, em última instância, realizam o ato de lembrar, no plano coletivo seriam os grupos sociais que determinariam o que será lembrado, e como será lembrado. Halbwachs também chamava atenção para um aspecto que nos interessará particularmente: a Memória (e tanto a individual como a coletiva) está sempre limitada no espaço e no tempo.



Os Lugares de Memória

Para além da própria constituição de um conceito de memória coletiva, que remonta originalmente aos primeiros trabalhos de Halbwachs, o novo campo de estudos foi encontrar um novo momento conceitual importante com o desenvolvimento da noção de “lugares de memória”. Esta nova entrada conceitual surgiu da necessidade de aprofundar algumas questões. Através de que ambientes, de que recursos, de que práticas e representações, de que suportes materiais se produz e se difunde a memória coletiva? A noção de ‘lugares de memória’ abre uma nova perspectiva em termos de organização e percepção da Memória Coletiva. Ela também permite que os historiadores comecem a pensar uma grande quantidade de fontes que permitiriam acessar a Memória Coletiva, para muito além das já mencionadas fontes testemunhais que, através da prática sistemática e crítica de entrevistas, permitiram o desenvolvimento da modalidade da História Oral. Os lugares de memória, conforme veremos, proporcionam novos tipos de fontes históricas para os historiadores que estejam interessados em trabalhar com a Memória Coletiva.

O primeiro grande empreendimento teórico e prático nesta novaa direção deve ser atribuído a Pierre Nora e a um grande número de historiadores, sociólogos, antropólogos e memorialistas franceses que - nas últimas décadas do século XX - integraram-se ao projeto coletivo relacionado aos “Lugares de Memória”, o qual resultou em sete volumes de textos dedicados à Memória Social na França. Depois do empreendimento pioneiro de Pierre Nora, projetos similares surgiram em outros países europeus, como a Alemanha e a Itália, e mais adiante em diversas partes do mundo. Através desta prática, resultante em livros e grandes circuitos de palestras e eventos, o conceito de “lugar de memória” foi encontrando sua definitiva estabilização, e hoje é um conceito fundamental para entender a Memória Coletiva.

Quais são, antes de mais nada, os propalados lugares da Memória. Jacques Le Goff os resume, a partir de uma passagem de Pierre Nora, em seu verbete “Memória” (1990, p.473):

"[há] os lugares topográficos, como os arquivos, as bibliotecas e os museus; lugares monumentais como os cemitérios e arquiteturas; lugares simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares funcionais, como os manuais, as autobiografias ou as associações"
Trata-se, naturalmente, apenas de uma pequena lista exemplificativa. Na célebre coleção francesa de sete volumes publicada sob a direção de Pierre Nora, uma consulta aos sumários de cada volume revela de imediato a complexidade e extensão envolvida pelos lugares de memória. Símbolos, Monumentos, a Pedagogia com suas enciclopédias e dicionários, as Heranças como os santuários régios e as relíquias monásticas, as Paisagens, o Patrimônio, o Território e mesmo a própria Língua, que realiza memória em si mesma ao trazer consigo traços de grupos específicos e da humanidade como um todo ... eis aqui um vasto universo de “lugares de memória” que inclui a própria historiografia, seja esta científica ou cronística. Onde existe o humano, pode-se dizer que a Memória estabelece-se, gerando os seus lugares. Desde as células familiares, que organizam sua memória através de recursos os mais diversos como as genealogias e os álbuns de fotografias, até as grandes Nações que erguem museus e arquivos para dar visibilidade à sua própria identidade, a Memória apresenta definitivamente muitos “lugares”.

Mas há, por fim, aquilo que poderíamos chamar de ‘lugares por trás dos lugares’, aqueles nos quais iremos encontrar não a produção ou elaboração da memória coletiva, mas os seus criadores maiores, as forças que impõem a memória coletiva de modos diversos, gerando os lugares de memória mais específicos. São estes ‘lugares por trás dos lugares’ “os Estados, os meios sociais e políticos, as comunidades de experiências históricas ou de gerações, levadas a constituir os seus arquivos em função dos usos diferentes que fazem da memória” (LE GOFF, 1990, p.473).

Entre os grandes lugares, pólos importantes de investimento para estas forças maiores que determinam a memória, estão aqueles espaços sócio-culturais que Leroi-Gourhan denominou “Instituições-Memória” (1964-65, p.67-8). Começaremos pelos grandes arquivos nacionais. Sabe-se de arquivos reais desde as antigas civilizações, dos quais nos dão exemplos os arquivos reais do palácio de Ougarit, na antiga Síria, ou as numerosas tabuletas ordenadas encontradas no palácio de Mari, entre tantos casos examinados por Leroi-Gourhan. Mas é com um novo sentido que o século XVIII já começa a instituir, ainda timidamente, seus depósitos centrais de arquivos, e mais como desdobramentos da erudição régia do que por necessidades voltadas para a construção da identidade nacional, o que ocorrerá decididamente na França a partir da Revolução Francesa e, nos demais países da Europa, logo após o período da Restauração. Um desenvolvimento inteiramente análogo é o que instituirá os Museus. Também discretamente instaurados a partir de meados do século XVIII, é também a partir da Revolução Francesa que se inicia a era dos museus nacionais (LE GOFF, 1990, p.464).

Entre os lugares da memória “simbólicos”, destacam-se estes grandes e por vezes ruidosos empreendimentos voltados para a memória coletiva que são as comemorações, tal como a comemoração anual da tomada da bastilha em 14 de julho, e particularmente a grande comemoração que ocorreu em 1989, assinalando os duzentos anos da Revolução Francesa. Na verdade, a tradição firma-se já a partir dos próprios tempos da Revolução Francesa, tal como nos mostram as pesquisas de Mona Ozouf (1976) e de Rosemonde Sanson (1976), e a história das festas revolucionárias revelará uma interessante dialética de lembranças e esquecimentos nos quais, no decurso dos vários períodos, alguns episódios emergem em detrimento de outros e depois recaem novamente no esquecimento, para atender aos interesses políticos de um novo momento (OZOUF, 1976). A própria comemoração da Revolução Francesa, como um todo, desaparece sob Napoleão e reaparece em 1880, tal como assinala Rosemonde Sanson sua pesquisa sobre A Festa e a Consciência Nacional (1976). A comemoração, deste modo, é desde já um importante “lugar de memória”, um momento em que se atualiza o grande evento, de importância para a formação e preservação da Identidade da população que o tornou emblemático, ou em vista de projetos políticos que buscam direcionar a opinião pública para suas próprias finalidades, do que nos dão fartos exemplos as festas na Alemanha Nazista e na Itália Fascista.

Se a comemoração é lugar de memória, curiosamente a “descomemoração” também pode sê-lo. Ian McBride, em History and Memory in Modern Ireland (2001) chama atenção para a Guerra de memórias que se instaura entre protestantes e católicos irlandeses, estabelecendo-se entre estes a tradição da “descomemoração explosiva”, que consiste em destruir através do vandalismo espontâneo ou do terrorismo bem planejado os monumentos ou estátuas erguidos pelos católicos. Surge aqui a noção de uma “contramemória”, ela mesma um lugar a mais, também discutido na coletânea dirigida por Pierre Nora.

As chamadas ‘memórias históricas’ também constituem capítulo importante para o grande universo da Memória Coletiva, e levam a repensar mais uma vez o seu papel na sociedade. Quando surge este vivo interesse em recuperar certas “memórias históricas”, senão no contexto de um tempo acelerado em que as identidades se vêem ameaçadas? A história e a memória entrelaçam-se nas “memórias históricas” para preencher uma função importante: quando a memória viva de determinados processos e acontecimentos começa a se dissolver através do desaparecimento natural das gerações que os vivenciaram, começa a se tornar ainda mais necessário um movimento de registro destas memórias. Foi assim, por exemplo, que se intensificou o interesse pela produção das “memórias do holocausto”. Assegurar o registro destes acontecimentos tão trágicos é também uma forma de adquirir controle sobre eles, de impedir que um dia se repitam, que caiam no esquecimento e que deixem de ser analisados criticamente.

Entre os objetos materiais e textuais da memória, os Dicionários e Enciclopédias ocupam um lugar de destaque, e podem ser descritos como vastos registros de memória parcelada ordenados alfabeticamente. Conforme os estudos de Leroi-Gourhan, os dicionários e enciclopédias invadem o cenário dos lugares de memória já no século XVIII, (1964-65, p.70-71). No princípio, os dicionários dirigem-se não apenas aos eruditos, mas também aos artesãos e às fábricas, e a Grande Enciclopédia de 1751 é descrita por Leroi-Gourhan como “uma série de pequenos manuais reunidos no dicionário”, ou como “uma memória alfabética parcelar na qual cada engrenagem isolada contém uma parte animada da memória total” (1964-65, p.70-71). Le Goff lança uma instigante questão: não terá sido a Enciclopédia o grande detonador da Revolução? (LE GOFF, 1990, p.461).

A emergência dos Dicionários e Enciclopédias ao primeiro plano dos lugares de memória no século XVIII lança luz obre uma questão importante para os historiadores da memória, que é precisamente a da dinâmica da dialética de lembranças e esquecimentos que se atualiza na Memória Coletiva, fazendo surgirem novos lugares de memória em detrimento de outros, e deslocando certos lugares de memória do centro para a periferia, e vice-versa. Assim, ao mesmo tempo em que no século XVIII entram em ascensão os Dicionários e Enciclopédias – estes pólos para a acumulação de uma memória parcelada que se dirige aos “vivos” – já neste mesmo período entre em franco declínio a comemoração dos mortos, e os túmulos, mesmo os dos reis, tornam-se muito simples no decurso de um processo que se inicia no século XVII e se conclui no final do século XVIII (LE GOFF, 1990, p.461). Vovelle intui que, no período das Luzes, manifesta-se de alguma maneira uma intenção de “eliminar a morte”; mas imediatamente depois da Revolução Francesa assiste-se ao retorno da memória dos mortos, e reinicia-se uma era de cemitérios, monumentalização de túmulos, profusão de inscrições literárias e proliferação de práticas de culto aos mortos através de visitas aos cemitérios (VOVELLE, 1974). O Romantismo, por fim, irá acentuar ainda mais esta tendência. Este exemplo é particularmente interessante. Mostra-nos um pouco da dialética de lembranças e esquecimentos da Memória Coletiva, reatualizando nos seus vários momentos o que se torna importante e o que se torna secundário em termos de objetos de “memoração”, de “rememoração”, de “comemoração” e de práticas de memória.

Ainda entre os pequenos objetos de memória, um verdadeiro arsenal se estabelece em função das práticas comemorativas: selos, moedas, medalhas, bandeiras, placas e inscrições comemorativas. Todos estes objetos de memória, obviamente, podem vir a se tornar fontes privilegiadas para os historiadores. Exemplificam a imposição da Memória dos estados e das nações através dos pequenos objetos. Mas, passando do plano “macro” à “escala micro”, também a Família, no recesso e na intimidade do Lar, desenvolve seus próprios recursos. Vale-se, por exemplo, da fotografia, conforme revelam os sistemáticos estudos de Pierre Bourdieu sobre os álbuns de família (1965). Mas, eis-nos de volta ao “macro” através desta mesma Fotografia, uma vez que os estados e os grupamentos sociais mais amplos também a utilizam. Há até mesmo uma sofisticada engenharia da memória que se torna possível através da deformação da fotografia, como bem nos mostrou o stalinismo algumas vezes ao incluir e excluir certas figuras políticas de um mesmo retrato em momentos históricos e políticos diversificados. Na Literatura, o tema foi habilmente desenvolvido por George Orwell no romance 1984, uma crítica a todas as formas de totalitarismos, mas também uma imaginação acerca das possibilidades de reconstrução da memória.

A noção dos “lugares de memória” apresenta, portanto, desenvolvimentos praticamente infinitos, e poderíamos ainda lembrar que os avanços dos estudos da Genética permitiram um controle extremamente preciso sobre a “memória da hereditariedade”. É possível, hoje, reconstituir através de pesquisas sobre o DNA a história biológica e populacional dos diversificados grupos humanos, permitindo atingir a aventura humana no período que habitualmente é classificado como pré-história. A “memória genética” da espécie humana, desta maneira, torna-se uma instância a mais que pode ser acompanhada pelos historiadores. As potencialidades da combinação de estudos de Memória Coletiva e da análise da memória hereditária são instigadores: pode-se imaginar o quanto o rastreamento das descendências e interações entre grupos populacionais, hoje bastante exequível através da análise das contribuições genéticas presentes no DNA de grupos humanos, pode proporcionar para uma melhor compreensão das narrativas míticas e outros produtos da Memória Coletiva.


 José D'Assunção Barros


Leia o artigo integral, de onde foram tirados os parágrafos deste texto, em Memória e História: uma discussão conceitual (BARROS, José D'Assunção. Tempos Históricos, vol.15, n°1, 2011, p.317-343).



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BIBLIOGRAFIA.

 BARROS, José D'Assunção. Memória e História: uma discussão conceitual. Tempos Históricos, vol.15, n°1, 2011, p.317-343.
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