quarta-feira, 13 de maio de 2020

Os Conceitos na História


A História, entre todas as ciências humanas – e na verdade entre todas as ciências – constitui um caso realmente particular no que se refere ao seu uso dos conceitos. Somente ela, por tratar com duas temporalidades distintas – a época do próprio historiador, e a época diferenciada à qual se refere o objeto de estudo ou processo examinado – apresenta uma complexa questão a ser examinada: a concomitância de dois níveis distintos de conceitos que devem ser considerados pelo historiador. Vejamos este problema de perto.


Singularidades do texto historiográfico


Vamos entender, antes de mais nada, a especificidade do texto de história frente a todos os demais gêneros de texto – e, de certo modo, a especificidade desta disciplina que é a História frente às outras, inclusive no âmbito das ciências humanas. Suponhamos que temos em uma das mãos o texto de um filósofo, e na outra o texto de um historiador. Melhor dizendo, imaginemos que está em uma das minhas mãos um texto filosófico (mesmo que não necessariamente escrito por um filósofo de formação); e, na outra, um texto historiográfico (ainda que não obrigatoriamente escrito por um historiador de formação). Seria possível reconhecer, sem nos ser revelada a autoria de cada texto, qual é o texto filosófico (escrito por um filósofo, ou por alguém que, naquele momento, está escrevendo filosofia)? Seria possível reconhecer qual é o texto do historiador? Oportunamente, poderemos fazer também o exercício de comparar o texto de um antropólogo, de um psicólogo ou de um sociólogo com o texto de um historiador. Por ora, fiquemos por aqui. A tarefa já é suficientemente densa.
Um filósofo típico, ao menos na maioria dos seus textos, costuma estabelecer um longo diálogo consigo mesmo. Seus textos, inclusive, podem ser auto-referentes. Eventualmente, o filósofo pode citar outros filósofos, ou ainda pensadores ligados a outros campos de estudos. Pode também ser mesmo parte do seu estilo o constante diálogo com outros autores. Não obstante, isso costuma ser raro, e de maneira nenhuma é a regra sine qua non entre os autores de filosofia[1]. O filósofo pode citar outros autores, ou dialogar com eles, mas não tem efetivamente nenhuma obrigação disso. Os seus companheiros de ofício, os outros filósofos, jamais o repreenderiam por não estabelecer explicitamente diálogos intertextuais com outros autores. O leitor comum de filosofia – o leigo ou o mais especializado – também não espera isto dele.
Podemos percorrer as setecentas páginas de O Ser e o Nada (1943), de Jean-Paul Sartre (1905-1980), e apenas encontrar um instigante e fascinante monólogo direto no qual este filósofo francês discute uma ou mais questões principais consigo mesmo, eventualmente entremeando na sua trama textual perguntas às quais ele mesmo responde. Não são citados, de modo geral, outros autores, e tampouco são transcritos ou parafraseados outros discursos ou fragmentos de discursos (passagens de outros textos). Raramente nos deparamos com uma nota de pé-de-página. O texto é extraordinariamente rico de reflexões e temáticas, e dá-se ao direito de dar voltas.
Quando lemos o texto de um filósofo típico, somos impactados por um impressionante exercício de livre pensar – embora, em muitos destes filósofos, um livre pensar sistemático, pesando cada palavra ou expressão, perseguindo a fundo o objeto de sua reflexão. O filósofo não parece de modo nenhum se constranger diante das regras de um ofício; não persegue obsessivamente um conjunto de procedimentos e trâmites que o obrigam a determinado estilo formal (ele deve encontrar o seu próprio, talvez um estilo único e inconfundível).
Quão distantes estamos, quando temos à mão o texto de um filósofo, dos textos mais típicos dos historiadores. O historiador jamais parece realizar um monólogo, em todos os sentidos que possa ter a palavra. Seu texto se mostra sempre desdobrado sobre si mesmo. O historiador costuma freqüentemente dialogar com os outros historiadores, e também com cientistas sociais e humanos, de modo geral. Seu texto, aliás, é freqüentemente atravessado por notas de pé-de-página, através das quais faz remissões de diversos tipos a outros autores, presta esclarecimentos adicionais, e, sobretudo, indica as referências rigorosas de suas fontes. Principalmente, o texto do historiador desdobra-se sobre textos de uma outra época (aquela que inscreve o seu objeto de estudo).
O historiador não se vê apenas tentado, mas instado, ou mesmo obrigado, a trazer para diante dos olhos do leitor os discursos de um outro tempo, seja sob a forma de discurso direto entre aspas, seja reorganizado-o em forma de paráfrases[2]. O que ocorre é que historiador precisa dar voz efetiva aos personagens históricos que constituem a sua trama. Ele os analisa, mas concomitantemente permite que eles falem, às vezes nos seus próprios termos. É isso o que queremos dizer quando ressaltamos que o texto do historiador “desdobra-se sobre si mesmo”, para tomar de empréstimo esta expressão de Michel de Certeau (1925-1986) sobre A Operação Historiográfica (1974).
Se abrirmos o texto de um historiador e não encontrarmos citações de fontes, bem como remissões a outros autores que se convoca em apoio das teses historiográficas propostas (ou contra elas), teremos a tendência de desconfiar - ou da seriedade do texto, ou da capacidade do seu autor para demonstrar suas afirmações. Se não encontrarmos notas, também estranhamos imediatamente. Se não acharmos indicados, rigorosamente, os caminhos que levam às fontes – as referências do arquivo se for o caso, as edições das fontes que estão publicadas, ou a indicação rigorosa das dimensões, técnicas empregadas e localização das fontes iconográficas, para o caso deste tipo de documentação – passamos a suspeitar de que não estamos diante do texto de um historiador, ou pelo menos de que não temos nas mãos um texto propriamente historiográfico, mesmo que ele trate diretamente de história. Sobretudo, queremos sempre encontrar nesse texto historiográfico as marcas do tempo. Após um nome próprio, costuma vir entre parêntesis uma data de nascimento, e outra de morte (se houver). Isso não ocorre por prazer mórbido de alguma espécie, mas simplesmente porque, através destas operações e de muitas outras, um ser humano é enquadrado em seu tempo, em um contexto histórico bem definido, em uma época ou lugar-tempo que o singulariza. Também os livros dificilmente são citados por um historiador sem a aposição da data do seu original entre parêntesis. Para o historiador, toda obra tem um lugar e um tempo que deve ser anunciado ao leitor, o que não ocorre necessariamente nos textos dos filósofos.
O principal, para a questão de que tratamos, é que esperamos ver o discurso do “outro” no discurso do historiador. Imbricado nele, isolado entre aspas, parafraseado, em estrutura dialógica – ou presente através de mil outras operações possíveis – esperamos encontrar incontornavelmente o “discurso do outro”. O historiador – por analisar um objeto ou um processo que se encontra em outra época, apartada da sua – precisa trazer em seu texto aquilo que torna viva essa época, que permite reapresentá-la quando ela não está mais presente (representá-la, literalmente).
Pode-se dizer que o historiador, distintamente do filósofo, está como que suspenso entre duas épocas. Ele alternadamente sobe a uma e desce à outra, com a rapidez da escrita. Estas duas épocas – a sua própria, de historiador, e a do processo histórico examinado, nomeadamente a das fontes e do objeto em estudo – têm cada qual a sua linguagem, o seu conjunto de feixes discursivos. É aqui que chegamos ao nosso ponto. Podem as duas serem a mesma linguagem na aparência mais imediata, se considerarmos que o idioma do historiador é o mesmo idioma das fontes escritas, e que as palavras empregadas pelo historiador e pelas fontes sejam literalmente as mesmas. Mas, sim, são duas linguagens. Essa é a raiz da questão a ser abordada.


Dois níveis de Conceitos


A dupla natureza do texto historiográfico – um tipo de texto que é construído a partir do entremeado de dois feixes de discursos, e que se desdobra a todo o momento sobre si mesmo – será o fator primordial para abordarmos o uso dos conceitos em História e compreendermos a sua especificidade frente ao uso de conceitos em outros campos de saber. A História é a principal ciência cujo objeto se acha diretamente mergulhado em outro tempo, o qual já desapareceu e apenas deixou sinais visíveis de sua passagem através das fontes históricas, dos vestígios e discursos que nos chegam do passado. Por isso o historiador, que tem a tarefa de analisar e trazer ao leitor esse feixe de discursos diversos que lhe chegam mediadamente do passado, precisa incorporá-los de alguma maneira, torná-los visíveis ou perceptíveis para o leitor como uma alteridade discursiva que é sua missão analisar. Esses textos das fontes históricas, os quais se apresentam ao historiador de várias maneiras, são escritos em outra linguagem ou dialeto discursivo que não os do historiador. Ou, pelo menos, são textos que apresentam outro lugar-momento da mesma linguagem que ele, historiador, utiliza.
A linguagem das fontes é por vezes traiçoeira: ela se utiliza amplamente das mesmas palavras das quais hoje o historiador se utiliza. Mas estas palavras, ancoradas em outra época, podiam ter então outros significados, outros usos, outras entonações, outros modos de terem sido um dia percebidas pelos seus ouvintes e leitores. É preciso decifrar a linguagem da fonte quase como esta se fosse, metaforicamente, uma língua estrangeira. Anteciparei aqui uma questão. As palavras (e também os conceitos) têm uma história. Com a passagem do tempo, elas podem mudar de sentidos, adquirir novas nuances ou mesmo receber significados totalmente distintos. É claro que, na sua maior parte, as palavras não mudarão tanto assim no interior de uma mesma língua, de modo que é possível a qualquer indivíduo ler um texto em sua língua mas de outra época e compreendê-lo adequadamente. Mas é significativo e relevante o potencial de mudança de algumas palavras.
A expressão “anacronismo”, ou “anacrônico” – “fora do tempo” ou ainda “contra o tempo” – é empregada quando ocorre a utilização estranha ou inadequada de algo, em nosso caso de uma palavra, quando importada de um para o outro tempo (Syrjamaki 2011, 20). Essa inadequação anacrônica pode ocorrer de duas maneiras inversas. Em um caso, pode ocorrer o anacronismo “de ontem para hoje”. É o que ocorre quando lemos um texto de outra época e, de modo inaceitável, atribuímos a certa palavra um sentido que ela não tem hoje, comprometendo toda a interpretação do texto. Em outro caso, pode ocorrer o anacronismo “de hoje para ontem”. É o que se verifica quando, ao tentar analisar um texto ou processo histórico do passado, ou ao tentar descrever cenas e acontecimentos históricos, utilizo uma palavra de hoje (que não existia naquela época) e o resultado é catastrófico, produzindo incontornáveis estranhamentos e drásticas deformações,
É importante já antecipar que freqüentemente encontramos palavras de hoje (e que não existiam em outra época) e que funcionam perfeitamente bem para descrever uma situação em um passado histórico. Ou seja, o uso de uma palavra de hoje para analisar o passado não produz necessariamente anacronismo. Pode produzir, mas pode também não produzir. Mais adiante, darei alguns exemplos de conceitos ou de usos inadequados de palavras que produzem anacronismo, e outros que não produzem. Por ora, ainda não abordaremos o problema dos conceitos, mas apenas o das palavras comuns. Por exemplo, o personagem histórico que é conhecido como Papa Gregório (540-604 d.C), ou ainda pela alcunha de Gregório Magno, não era na verdade chamado de papa na época, uma vez que a palavra “papa” não era então usada exclusivamente para designar os pontífices romanos. No entanto, é admissível utilizar a palavra “papa”, com o sentido de hoje, para designar os líderes da Igreja Católica em uma época em que a palavra ainda não tinha este sentido.
Esta operação, por alguma razão, não provoca anacronismo. Ou melhor, tanto não é produzido nenhum desconforto ou estranhamento quando ouvimos um antigo bispo de Roma ser chamado de “papa” nos livros de História, como não parece haver nenhuma deformação da história neste uso. Entretanto, soa bem estranho usar a palavra “guerrilheiro” – muito familiar nos dias de hoje – para designar indivíduos pertencentes a seitas beligerantes do passado distante que praticavam a tocaia, a sabotagem e outras formas de luta contra um poder estabelecido. Não há muita explicação sobre porque algumas palavras dão certo e outras não; isto é, sobre porque algumas das palavras de hoje – ao serem usadas para nos referirmos a outras sociedades históricas – parecem produzir de imediato a inadequação anacrônica, e outras não. O historiador precisa desenvolver um feeling para o correto uso de palavras de um tempo em outro. Não há uma receita para isto.
Por ora, queremos retornar à questão dos conceitos. Koselleck dizia que o historiador trabalha com dois níveis de conceitos. O primeiro nível – que aqui chamaremos de “nível 1” – é o nível no qual se encontram os conceitos oriundos da própria comunidade científica na qual se inscreve o próprio historiador. Vamos entender esse nível como a época conceitual do historiador, mas deve ficar claro que aqui estarão todos os conceitos que são utilizados atualmente como um repertório vivo de possibilidades pelos historiadores e cientistas sociais, mesmo que estes conceitos venham eventualmente de outros séculos mais recentes (ou mesmo mais distantes).
Por exemplo, “modo de produção” é um conceito que remonta a Karl Marx e Friedrich Engels em meados do século XIX, e o mesmo se pode dizer do conceito de “ideologia”, que não foi propriamente um conceito cunhado pelos dois fundadores do Materialismo Histórico, mas que com eles adquire sentidos especiais. Passados 170 anos da publicação da célebre obra A Ideologia Alemã (1846), escrita conjuntamente por Marx e Engels – bem como de outras obras nas quais estes autores propuseram um certo número de sentidos para os conceitos de “modo de produção” e de “ideologia” –, estes conceitos seguem sendo amplamente utilizados por cientistas sociais e humanos de hoje. Se são utilizados como conceitos atuais, é porque os nossos autores contemporâneos consideram que estes conceitos funcionam bem nas análises em geral, ao menos no interior de certa perspectiva teórica que é a do Materialismo Histórico. Modo de Produção e Ideologia, embora conceitos cunhados no século XIX, podem ser por isso considerados conceitos atuais, sendo muito utilizados em pleno século XXI. A compreensão destes conceitos pode variar um pouco, ou mesmo mais significativamente de autor a autor, e autores diversos podem ter proposto novas discussões em torno destas formulações conceituais, mas estas expressões verbais – e ainda mais especificamente os conceitos que elas encaminham – seguem vigorosas como parte do repertório de possibilidades expressivas dos cientistas sociais e humanos.
Também não é raro que um cientista político utilize em suas digressões teóricas conceitos de Nicolau Maquiavel (1469-1527), não necessariamente todos, que funcionem bem como instrumentos de análise nos dias de hoje. Estes conceitos – conceitos que estão em pleno uso pelos historiadores e cientistas sociais de hoje, mesmo que originários de outras épocas ou que sejam da lavra de autores já falecidos – devem ser compreendidos como conceitos produzidos pela grande comunidade contemporânea de historiadores e cientistas sociais. Para nossa discussão, também estes conceitos devem ser considerados atuais.
Um dos níveis de conceitos ao qual se refere o historiador alemão Reinhart Koselleck, deste modo, é o dos conceitos que nos dias de hoje são instrumentalizados pelos historiadores. Entrementes, existe o outro nível. Este é o que está ancorado no universo das fontes e do processo histórico examinado (os conceitos de época, por exemplo, os quais eram pensados de certa maneira pelos contemporâneos deste ou daquele processo histórico do passado). O que produz esta singular dicotomia entre dois níveis de conceitos a serem enfrentados pelos historiadores é o problema que começámos a discutir anteriormente: a História é uma ciência humana que trabalha com uma outra época. O historiador está suspenso entre duas temporalidades, e o texto que ele produz é um texto desdobrado sobre si mesmo: um gênero textual que precisa trazer, aos olhos do leitor, o discurso do “outro histórico” (seja através de transcrições das fontes entre aspas, seja através de paráfrases delas). Esse último aspecto – trazer o discurso das fontes – não visa simplesmente reproduzi-lo, mas sim analisá-lo, problematizá-lo, construir um conhecimento sobre estes discursos de uma outra época e, através desse conhecimento, compreender os processos históricos que a atravessavam, bem como a especificidade das sociedades que nela viveram. É porque o texto do historiador desdobra-se sobre si mesmo – oscilando entre as análises do historiador e o dar a ler das fontes, ou entre a linguagem do historiador e a linguagem das fontes – que estes dois níveis de conceitos aparecem com tanta clareza no texto especificamente historiográfico.


De onde vêm os conceitos da História?


Há conceitos, conforme já ressaltámos, que se impõem ao historiador a partir do universo das fontes examinadas e da linguagem por elas mobilizada. Não nos deteremos muito, por ora, neste primeiro ambiente de origens conceituais, pois o discutiremos mais adiante. Por ora, apenas ressaltemos que as fontes frequentemente oferecem ao historiador um material conceitual bem importante, seja para problematizá-lo, conservando-o sob controle e à distância, sem assumi-lo como instrumental de análise, seja para incorporá-lo ao próprio repertório conceitual historiográfico. Os gregos antigos – os atenienses, por exemplo – chamavam à suas cidades e às suas comunidades políticas de “polis”. Os historiadores que tomam por objeto de estudo a antiguidade grega costumam se apropriar instrumentalmente da conceituação de polis desenvolvida pelos próprios gregos. Este exemplo, ao qual voltaremos oportunamente, remete-nos a um primeiro ambiente do qual provêm os conceitos historiográficos: as próprias fontes históricas (1).
Em seguida, devemos considerar que a comunidade historiográfica – aqui compreendida como o grande conjunto formado pelos historiadores de todas as épocas e por toda a sua rede de pesquisas e obras – vai consolidando ao longo da própria história da historiografia um vocabulário conceitual muito próprio e específico da História. Esse vasto repertório conceitual também é formado a partir de extratos de origens diversas; mas uma vez que alguns conceitos se consolidam no repertório historiográfico devido ao seu uso bem-sucedido, tendemos a nos esquecer das diferentes origens dos conceitos que o constituem e passamos a utilizá-los como um repertório autorizado pela própria comunidade historiadora. Muitos destes conceitos não possuem autoria discernível, embora em muitos casos possam ser historiados se houver um interesse de pesquisa neste sentido. “Antigo Regime”, por exemplo, foi um conceito criado nos meios literários, jurídicos e políticos do século iluminista para se referir ao modelo social, econômico e político da Europa no período anterior à Revolução Francesa. Posto isto, os historiadores das gerações seguintes passaram a utilizar o conceito em suas análises e este uso segue até hoje, obviamente com direito a críticas de alguns setores internos à própria comunidade historiadora.
O mesmo pode ser dito do conceito de “populismo”, noção de autoria desconhecida cujo uso se generalizou para variadas realidades políticas, até adquirir um sentido especial em alguns dos estudos sobre os governos latino-americanos que se estabelecem a partir dos anos 1930. O uso do conceito para o regime de Getúlio Vargas, no Brasil, estendendo-se em algumas análises até períodos subsequentes, tem suscitado polêmicas na historiografia sobre História do Brasil, com partidários a favor ou contra sua operacionalização para o estudo destes diversos períodos. Em outras palavras, está em discussão o próprio uso do conceito de “populismo” (da expressão em si), a sua compreensão (as notas que o definem), e os limites do seu potencial generalizador (as possibilidades de uso em uma extensão mais ampla, para o caso de períodos diversos da História da América, sem contar o universo mais vasto de possíveis usos do conceito para realidades históricas que vão da Rússia de fins do século XIX às modernas repúblicas latino-americanas).
A discussão sobre um conceito, seja qual for a origem de seus materiais, é sempre histórica, e deve se atualizar permanentemente. Nos anos 1960, começam a aflorar na historiografia brasileira os estudos históricos mais consistentes sobre o populismo e, sobretudo, as obras teóricas de reflexão sobre esta formulação conceitual (Weffort 1978). As disputas em torno do conceito, e também em favor do seu abandono, têm se mostrado particularmente acirradas, e por vezes evolvem confrontos entre instituições e centros de pesquisa. De todo modo, o conceito já faz certamente parte de um repertório historiográfico possível, nos dias de hoje. Uma rica discussão sobre as definições possíveis de “populismo” perpassa uma historiografia que tem no Brasil apenas um dos seus muitos lugares de produção. Populismo, Antigo Regime, bem como inúmeros outros conceitos, fazem parte de um extrato conceitual que se disponibiliza como um patrimônio produzido no seio da comunidade historiadora (2).
Vamos seguir adiante em nosso quadro sobre as instâncias e ambientes que fornecem conceitos à História. Há conceitos que surgiram como criações pessoais de um historiador, diante do desafio de analisar certo problema histórico. São aqueles conceitos que, nos seus primórdios, tiveram uma assinatura, e que em muitos casos ainda a carregam como uma referência quase obrigatória. A adequação de uma proposta conceitual, em muitos destes casos, permite que o conceito se expanda em suas possibilidades de uso e se popularize ou se generalize mais na comunidade historiadora, tornando-se parte efetiva do seu repertório. Podemos exemplificar com o conceito de “coronelismo”, desenvolvido pelo jurista-historiador Vitor Nunes Leal (1948). O conceito refere-se ao sistema social e político específico que surge no Brasil da Primeira República (1889-1930), com a implantação do federalismo republicano em substituição ao antigo centralismo imperial. O Coronelismo é este sistema no qual o poder se vê partilhado verticalmente da figura do “coronel” (um fazendeiro com grande poder local) até outras instâncias como a dos Governadores, de lá culminando em um Presidente da República cujo poder, na verdade, termina por se resignar a uma política determinada principalmente ao nível dos governos dos estados. O significativo poder conferido pelos governadores aos “coronéis” – que passam a deter poderes de vida e de morte sobre a comunidade em que atuam – e a articulação da rede de “coronéis” em torno de cada Governador, a verdadeira fonte do poder a eles delegado, dá a tônica desse novo sistema, que vive particularmente da dinâmica de barganhas estabelecida entre os governadores e os coronéis.
Muito se estudou e se escreveu sobre o mundo político concernente ao Brasil da Primeira República – sendo a própria designação deste período objeto de intensa discussão conceitual (“República Velha”, “Primeira República”, “Brasil República”?). A começar pela própria oscilação de designações concernentes a este período histórico, um variado vocabulário historiográfico tem sido empregado nas análises desenvolvidas pelos pesquisadores. O conceito de “coronelismo”, entrementes, é um destes que foram muito bem-sucedidos, e graças a isto obteve longa vida na história da historiografia. No Brasil, a comunidade historiadora o assumiu – ao lado de outras noções como a de mandonismo e de clientelismo – no interior do repertório conceitual mais utilizado para a discussão dos problemas sociais típicos da Primeira República. Há uma viva discussão sobre a mais adequada compreensão do conceito (o que ele significa, as notas que o caracterizam), bem como sobre a sua extensão aceitável (os casos que a ele podem se referir), e também sobre as relações deste conceito com outros como o de mandonismo e o de clientelismo. Há de fato uma viva polêmica em torno do conceito, e há muitos historiadores que preferem rejeitá-lo criticamente, ao lado de outros que o instrumentalizam. Mas ninguém discorda que, optando-se ou não o seu uso, a expressão tornou-se parte de um vocabulário que pode ser mobilizado pelos historiadores do tema. Trata-se de um bom exemplo de como um conceito criado pessoalmente – um conceito batizado e de nascimento datado em uma obra específica – passou daí a um repertório conceitual mais amplo [3].
Não é nada raro que a História extraia seus materiais conceituais das demais ciências humanas. A Antropologia, a Sociologia, a Ciência Política, a Geografia, a Lingüística, a Psicologia, e outras áreas de estudo em formação como a da Memória social, têm fornecido aos historiadores um rico manancial de conceitos. Por fim, existe mesmo a possibilidade de conceituais oriundos de campos de saber fora do eixo das ciências humanas [5]. O aproveitamento de materiais conceituais vindos de outros campos de saber, que não os campos mais vizinhos das ciências humanas com os quais o diálogo é quase evidente, não é de modo algum estranho à História, e tampouco às demais ciências sociais e humanas. Pode ocorrer tanto a migração direta de um conceito já utilizado em outros campos da saber, como a migração de um componente para formar um conceito maior. Para este último caso, já mencionamos o caso do conceito de “densidade demográfica”, que extrai a sua componente “densidade” do campo da Física. Neste, a densidade corresponde a uma relação entre massa e volume, da mesma forma que na sociologia, na geografia ou na história, a “densidade demográfica” irá corresponder a uma relação entre a população e o espaço por ela ocupado.
Pode-se lembrar ainda a importação do conceito de “crise” para áreas diversas dos estudos históricos e sociais. “Crise econômica”, “crise social” ou “crise política” apresentam como componente inicial uma noção que já era, há muito, utilizada na Medicina. “Crise reumática”, “crise hepática”, “crise vascular”, ou qualquer outra, constituíam desde há muito vocábulos correntes na Medicina, utilizados para indicar a disfunção de um sistema, de um órgão, de um organismo. O uso do conceito, migrado da Medicina e readaptado a novos usos, é mais recente na História e na Economia, embora nos dias hoje o vocabulário da “crise” esteja tão difundido como referência aos problemas sociais que tendemos a nos esquecer que este uso tem uma história, e que o conceito de “crise” em certo momento era restrito ao estudo dos organismos vivos (voltaremos a isto mais adiante). Muitos exemplos podem ser dados, como o do conceito de “segregação”, derivado de áreas como a genética e botânica, o qual encontrou acolhida em estudos sobre a sociedade, gerando novos conceitos compostos, como o de “segregação urbana”. Este, como outros conceitos, também entraram para a linguagem comum, cotidiana, para a língua viva utilizada por todos.
Este aspecto, aliás, permite que possamos dar uma volta completa em nosso quadro [6]. Os cientistas estão sempre mergulhados na vida (ou deveriam estar). Tanto ajudam a criar a língua viva com que todos nos comunicamos, como extraem da língua viva já existente materiais para as suas formulações conceituais. Com os historiadores, não é diferente. Se alguns conceitos podem ou puderam ser extraídos das próprias fontes (ou da língua viva do passado), também a própria língua viva de hoje pode servir de inspiração para a criação de conceitos a serem utilizados pelos historiadores atuais. O mundo das fontes – constituído de vestígios, discursos e fragmentos de discursos – chega-nos, aliás, de uma realidade que um dia já foi a própria vida viva, pulsante, diversificada e cotidiana. No futuro, da mesma forma, este universo que constitui a realidade de hoje terá passado ao campo da experiência – ao passado histórico – e continuará a inspirar os historiadores a usarem certas expressões como conceitos úteis para as análises historiográficas. O ponto sexto retorna ao primeiro. Esse é o trabalho dos historiadores – estes cientistas cujo discurso, ele mesmo, passará um dia ao mundo das fontes, ensejando um círculo perfeito.

José D'Assunção Barros 


O texto exposto neste post é a primeira parte do artigo Os Conceitos na História: considerações sobre o anacronismo, publicado na revista Ler História, n°71, 2017.


O artigo corresponde a um dos capítulos de uma obra mais ampla: o livro Os Conceitos: seus usos nas ciências humanas, publicado pela Editora Vozes (BARROS, José D'Assunção. Os Conceitos na História. Petrópolis: Editora Vozes, 2015).



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