A
História, entre todas as ciências humanas – e na verdade entre todas as ciências
– constitui um caso realmente particular no que se refere ao seu uso dos
conceitos. Somente ela, por tratar com duas temporalidades distintas – a época do
próprio historiador, e a época diferenciada à qual se refere o objeto de estudo
ou processo examinado – apresenta uma complexa questão a ser examinada: a
concomitância de dois níveis distintos de conceitos que devem ser considerados
pelo historiador. Vejamos este problema de perto.
Singularidades do texto historiográfico
Vamos
entender, antes de mais nada, a especificidade do texto de história frente a
todos os demais gêneros de texto – e, de certo modo, a especificidade desta
disciplina que é a História frente às outras, inclusive no âmbito das ciências
humanas. Suponhamos que temos em uma das mãos o texto de um filósofo, e na
outra o texto de um historiador. Melhor dizendo, imaginemos que está em uma das
minhas mãos um texto filosófico (mesmo que não necessariamente escrito por um
filósofo de formação); e, na outra, um texto historiográfico (ainda que não obrigatoriamente
escrito por um historiador de formação). Seria possível reconhecer, sem nos ser
revelada a autoria de cada texto, qual é o texto filosófico (escrito por um
filósofo, ou por alguém que, naquele momento, está escrevendo filosofia)? Seria
possível reconhecer qual é o texto do historiador? Oportunamente, poderemos
fazer também o exercício de comparar o texto de um antropólogo, de um psicólogo
ou de um sociólogo com o texto de um historiador. Por ora, fiquemos por aqui. A
tarefa já é suficientemente densa.
Um
filósofo típico, ao menos na maioria dos seus textos, costuma estabelecer um
longo diálogo consigo mesmo. Seus textos, inclusive, podem ser auto-referentes.
Eventualmente, o filósofo pode citar outros filósofos, ou ainda pensadores
ligados a outros campos de estudos. Pode também ser mesmo parte do seu estilo o
constante diálogo com outros autores. Não obstante, isso costuma ser raro, e de
maneira nenhuma é a regra sine qua non entre
os autores de filosofia[1]. O filósofo pode citar outros autores, ou dialogar
com eles, mas não tem efetivamente nenhuma obrigação disso. Os seus
companheiros de ofício, os outros filósofos, jamais o repreenderiam por não
estabelecer explicitamente diálogos intertextuais com outros autores. O leitor
comum de filosofia – o leigo ou o mais especializado – também não espera isto
dele.
Podemos
percorrer as setecentas páginas de O Ser
e o Nada (1943), de Jean-Paul Sartre (1905-1980), e apenas encontrar um instigante
e fascinante monólogo direto no qual este filósofo francês discute uma ou mais questões
principais consigo mesmo, eventualmente entremeando na sua trama textual
perguntas às quais ele mesmo responde. Não são citados, de modo geral, outros
autores, e tampouco são transcritos ou parafraseados outros discursos ou
fragmentos de discursos (passagens de outros textos). Raramente nos deparamos
com uma nota de pé-de-página. O texto é extraordinariamente rico de reflexões e
temáticas, e dá-se ao direito de dar voltas.
Quando
lemos o texto de um filósofo típico, somos impactados por um impressionante
exercício de livre pensar – embora, em muitos destes filósofos, um livre pensar
sistemático, pesando cada palavra ou expressão, perseguindo a fundo o objeto de
sua reflexão. O filósofo não parece de modo nenhum se constranger diante das
regras de um ofício; não persegue obsessivamente um conjunto de procedimentos e
trâmites que o obrigam a determinado estilo formal (ele deve encontrar o seu
próprio, talvez um estilo único e inconfundível).
Quão distantes
estamos, quando temos à mão o texto de um filósofo, dos textos mais típicos dos
historiadores. O historiador jamais parece realizar um monólogo, em todos os sentidos
que possa ter a palavra. Seu texto se mostra sempre desdobrado sobre si mesmo. O
historiador costuma freqüentemente dialogar com os outros historiadores, e
também com cientistas sociais e humanos, de modo geral. Seu texto, aliás, é
freqüentemente atravessado por notas de pé-de-página, através das quais faz
remissões de diversos tipos a outros autores, presta esclarecimentos
adicionais, e, sobretudo, indica as referências rigorosas de suas fontes.
Principalmente, o texto do historiador desdobra-se sobre textos de uma outra
época (aquela que inscreve o seu objeto de estudo).
O
historiador não se vê apenas tentado, mas instado, ou mesmo obrigado, a trazer para
diante dos olhos do leitor os discursos de um outro tempo, seja sob a forma de
discurso direto entre aspas, seja reorganizado-o em forma de paráfrases[2]. O que ocorre é que historiador precisa dar voz efetiva
aos personagens históricos que constituem a sua trama. Ele os analisa, mas
concomitantemente permite que eles falem, às vezes nos seus próprios termos. É
isso o que queremos dizer quando ressaltamos que o texto do historiador
“desdobra-se sobre si mesmo”, para tomar de empréstimo esta expressão de Michel
de Certeau (1925-1986) sobre A Operação
Historiográfica (1974).
Se abrirmos o
texto de um historiador e não encontrarmos citações de fontes, bem como remissões a
outros autores que se convoca em apoio das teses historiográficas propostas (ou
contra elas), teremos a tendência de desconfiar - ou da seriedade do texto, ou da capacidade do seu autor para demonstrar suas afirmações. Se não encontrarmos notas, também estranhamos imediatamente. Se não acharmos
indicados, rigorosamente, os caminhos que levam às fontes – as referências do
arquivo se for o caso, as edições das fontes que estão publicadas, ou a
indicação rigorosa das dimensões, técnicas empregadas e localização das fontes
iconográficas, para o caso deste tipo de documentação – passamos a suspeitar de
que não estamos diante do texto de um historiador, ou pelo menos de que não temos
nas mãos um texto propriamente historiográfico, mesmo que ele trate diretamente
de história. Sobretudo, queremos sempre encontrar nesse texto historiográfico as marcas do tempo. Após um
nome próprio, costuma vir entre parêntesis uma data de nascimento, e outra de morte
(se houver). Isso não ocorre por prazer mórbido de alguma espécie, mas simplesmente porque,
através destas operações e de muitas outras, um ser humano é enquadrado em seu
tempo, em um contexto histórico bem definido, em uma época ou lugar-tempo que o
singulariza. Também os livros dificilmente são citados por um historiador sem a
aposição da data do seu original entre parêntesis. Para o historiador, toda
obra tem um lugar e um tempo que deve ser anunciado ao leitor, o que não ocorre
necessariamente nos textos dos filósofos.
O
principal, para a questão de que tratamos, é que esperamos ver o discurso do “outro”
no discurso do historiador. Imbricado nele, isolado entre aspas, parafraseado,
em estrutura dialógica – ou presente através de mil outras operações possíveis
– esperamos encontrar incontornavelmente o “discurso do outro”. O historiador – por
analisar um objeto ou um processo que se encontra em outra época, apartada da
sua – precisa trazer em seu texto aquilo que torna viva essa época, que permite
reapresentá-la quando ela não está mais presente (representá-la, literalmente).
Pode-se
dizer que o historiador, distintamente do filósofo, está como que suspenso
entre duas épocas. Ele alternadamente sobe a uma e desce à outra, com a rapidez
da escrita. Estas duas épocas – a sua própria, de historiador, e a do processo
histórico examinado, nomeadamente a das fontes e do objeto em estudo – têm cada
qual a sua linguagem, o seu conjunto de feixes discursivos. É aqui que chegamos
ao nosso ponto. Podem as duas serem a mesma linguagem na aparência mais
imediata, se considerarmos que o idioma do historiador é o mesmo idioma das
fontes escritas, e que as palavras empregadas pelo historiador e pelas fontes sejam
literalmente as mesmas. Mas, sim, são duas linguagens. Essa é a raiz da questão
a ser abordada.
A
dupla natureza do texto historiográfico – um tipo de texto que é construído a
partir do entremeado de dois feixes de discursos, e que se desdobra a todo o
momento sobre si mesmo – será o fator primordial para abordarmos o uso dos
conceitos em História e compreendermos a sua especificidade frente ao uso de
conceitos em outros campos de saber. A História é a principal ciência cujo
objeto se acha diretamente mergulhado em outro tempo, o qual já desapareceu e
apenas deixou sinais visíveis de sua passagem através das fontes históricas,
dos vestígios e discursos que nos chegam do passado. Por isso o historiador,
que tem a tarefa de analisar e trazer ao leitor esse feixe de discursos
diversos que lhe chegam mediadamente do passado, precisa incorporá-los de
alguma maneira, torná-los visíveis ou perceptíveis para o leitor como uma
alteridade discursiva que é sua missão analisar. Esses textos das fontes
históricas, os quais se apresentam ao historiador de várias maneiras, são
escritos em outra linguagem ou dialeto discursivo que não os do historiador.
Ou, pelo menos, são textos que apresentam outro lugar-momento da mesma
linguagem que ele, historiador, utiliza.
A
linguagem das fontes é por vezes traiçoeira: ela se utiliza amplamente das
mesmas palavras das quais hoje o historiador se utiliza. Mas estas palavras,
ancoradas em outra época, podiam ter então outros significados, outros usos,
outras entonações, outros modos de terem sido um dia percebidas pelos seus
ouvintes e leitores. É preciso decifrar a linguagem da fonte quase como esta se
fosse, metaforicamente, uma língua estrangeira. Anteciparei aqui uma questão.
As palavras (e também os conceitos) têm uma história. Com a passagem do tempo,
elas podem mudar de sentidos, adquirir novas nuances ou mesmo receber
significados totalmente distintos. É claro que, na sua maior parte, as palavras
não mudarão tanto assim no interior de uma mesma língua, de modo que é possível
a qualquer indivíduo ler um texto em sua língua mas de outra época e
compreendê-lo adequadamente. Mas é significativo e relevante o potencial de
mudança de algumas palavras.
A
expressão “anacronismo”, ou “anacrônico” – “fora do tempo” ou ainda “contra o
tempo” – é empregada quando ocorre a utilização estranha ou inadequada de algo,
em nosso caso de uma palavra, quando importada de um para o outro tempo (Syrjamaki
2011, 20).
Essa inadequação anacrônica pode ocorrer de duas maneiras inversas. Em um caso,
pode ocorrer o anacronismo “de ontem para hoje”. É o que ocorre quando lemos um
texto de outra época e, de modo inaceitável, atribuímos a certa palavra um
sentido que ela não tem hoje, comprometendo toda a interpretação do texto. Em
outro caso, pode ocorrer o anacronismo “de hoje para ontem”. É o que se
verifica quando, ao tentar analisar um texto ou processo histórico do passado,
ou ao tentar descrever cenas e acontecimentos históricos, utilizo uma palavra
de hoje (que não existia naquela época) e o resultado é catastrófico, produzindo
incontornáveis estranhamentos e drásticas deformações,
É
importante já antecipar que freqüentemente encontramos palavras de hoje (e que
não existiam em outra época) e que funcionam perfeitamente bem para descrever
uma situação em um passado histórico. Ou seja, o uso de uma palavra de hoje
para analisar o passado não produz necessariamente anacronismo. Pode produzir, mas pode também não produzir. Mais adiante,
darei alguns exemplos de conceitos ou de usos inadequados de palavras que
produzem anacronismo, e outros que não produzem. Por ora, ainda não abordaremos
o problema dos conceitos, mas apenas o das palavras comuns. Por exemplo, o
personagem histórico que é conhecido como Papa Gregório (540-604 d.C), ou ainda
pela alcunha de Gregório Magno, não era na verdade chamado de papa na época,
uma vez que a palavra “papa” não era então usada exclusivamente para designar
os pontífices romanos. No entanto, é admissível utilizar a palavra “papa”, com
o sentido de hoje, para designar os líderes da Igreja Católica em uma época em
que a palavra ainda não tinha este sentido.
Esta
operação, por alguma razão, não provoca anacronismo. Ou melhor, tanto não é
produzido nenhum desconforto ou estranhamento quando ouvimos um antigo bispo de
Roma ser chamado de “papa” nos livros de História, como não parece haver
nenhuma deformação da história neste uso. Entretanto, soa bem estranho usar a
palavra “guerrilheiro” – muito familiar nos dias de hoje – para designar
indivíduos pertencentes a seitas beligerantes do passado distante que
praticavam a tocaia, a sabotagem e outras formas de luta contra um poder
estabelecido. Não há muita explicação sobre porque algumas palavras dão certo e
outras não; isto é, sobre porque algumas das palavras de hoje – ao serem usadas
para nos referirmos a outras sociedades históricas – parecem produzir de
imediato a inadequação anacrônica, e outras não. O historiador precisa
desenvolver um feeling para o correto
uso de palavras de um tempo em outro. Não há uma receita para isto.
Por
ora, queremos retornar à questão dos conceitos. Koselleck dizia que o
historiador trabalha com dois níveis de conceitos. O primeiro nível – que aqui
chamaremos de “nível 1” – é o nível no qual se encontram os conceitos oriundos
da própria comunidade científica na qual se inscreve o próprio historiador.
Vamos entender esse nível como a época conceitual do historiador, mas deve
ficar claro que aqui estarão todos os conceitos que são utilizados atualmente
como um repertório vivo de possibilidades pelos historiadores e cientistas
sociais, mesmo que estes conceitos venham eventualmente de outros séculos mais
recentes (ou mesmo mais distantes).
Por
exemplo, “modo de produção” é um conceito que remonta a Karl Marx e Friedrich
Engels em meados do século XIX, e o mesmo se pode dizer do conceito de
“ideologia”, que não foi propriamente um conceito cunhado pelos dois fundadores
do Materialismo Histórico, mas que com eles adquire sentidos especiais.
Passados 170 anos da publicação da célebre obra A Ideologia Alemã (1846), escrita conjuntamente por Marx e Engels –
bem como de outras obras nas quais estes autores propuseram um certo número de
sentidos para os conceitos de “modo de produção” e de “ideologia” –, estes
conceitos seguem sendo amplamente utilizados por cientistas sociais e humanos
de hoje. Se são utilizados como conceitos atuais, é porque os nossos autores
contemporâneos consideram que estes conceitos funcionam bem nas análises em
geral, ao menos no interior de certa perspectiva teórica que é a do
Materialismo Histórico. Modo de Produção e Ideologia, embora conceitos cunhados
no século XIX, podem ser por isso considerados conceitos atuais, sendo muito
utilizados em pleno século XXI. A compreensão destes conceitos pode variar um
pouco, ou mesmo mais significativamente de autor a autor, e autores diversos
podem ter proposto novas discussões em torno destas formulações conceituais,
mas estas expressões verbais – e ainda mais especificamente os conceitos que
elas encaminham – seguem vigorosas como parte do repertório de possibilidades
expressivas dos cientistas sociais e humanos.
Também
não é raro que um cientista político utilize em suas digressões teóricas
conceitos de Nicolau Maquiavel (1469-1527), não necessariamente todos, que
funcionem bem como instrumentos de análise nos dias de hoje. Estes conceitos –
conceitos que estão em pleno uso pelos historiadores e cientistas sociais de
hoje, mesmo que originários de outras épocas ou que sejam da lavra de autores
já falecidos – devem ser compreendidos como conceitos produzidos pela grande
comunidade contemporânea de historiadores e cientistas sociais. Para nossa
discussão, também estes conceitos devem ser considerados atuais.
Um
dos níveis de conceitos ao qual se refere o historiador alemão Reinhart
Koselleck, deste modo, é o dos conceitos que nos dias de hoje são
instrumentalizados pelos historiadores. Entrementes, existe o outro nível. Este
é o que está ancorado no universo das fontes e do processo histórico examinado
(os conceitos de época, por exemplo, os quais eram pensados de certa maneira
pelos contemporâneos deste ou daquele processo histórico do passado). O que
produz esta singular dicotomia entre dois níveis de conceitos a serem
enfrentados pelos historiadores é o problema que começámos a discutir
anteriormente: a História é uma ciência humana que trabalha com uma outra
época. O historiador está suspenso entre duas temporalidades, e o texto que ele
produz é um texto desdobrado sobre si mesmo: um gênero textual que precisa
trazer, aos olhos do leitor, o discurso do “outro histórico” (seja através de
transcrições das fontes entre aspas, seja através de paráfrases delas). Esse
último aspecto – trazer o discurso das fontes – não visa simplesmente
reproduzi-lo, mas sim analisá-lo, problematizá-lo, construir um conhecimento
sobre estes discursos de uma outra época e, através desse conhecimento,
compreender os processos históricos que a atravessavam, bem como a
especificidade das sociedades que nela viveram. É porque o texto do historiador
desdobra-se sobre si mesmo – oscilando entre as análises do historiador e o dar
a ler das fontes, ou entre a linguagem do historiador e a linguagem das fontes
– que estes dois níveis de conceitos aparecem com tanta clareza no texto
especificamente historiográfico.
De onde vêm os conceitos da História?
Há
conceitos, conforme já ressaltámos, que se impõem ao historiador a partir do
universo das fontes examinadas e da linguagem por elas mobilizada. Não nos
deteremos muito, por ora, neste primeiro ambiente de origens conceituais, pois
o discutiremos mais adiante. Por ora, apenas ressaltemos que as fontes
frequentemente oferecem ao historiador um material conceitual bem importante,
seja para problematizá-lo, conservando-o sob controle e à distância, sem
assumi-lo como instrumental de análise, seja para incorporá-lo ao próprio
repertório conceitual historiográfico. Os gregos antigos – os atenienses, por
exemplo – chamavam à suas cidades e às suas comunidades políticas de “polis”.
Os historiadores que tomam por objeto de estudo a antiguidade grega costumam se
apropriar instrumentalmente da conceituação de polis desenvolvida pelos
próprios gregos. Este exemplo, ao qual voltaremos oportunamente, remete-nos a
um primeiro ambiente do qual provêm os conceitos historiográficos: as próprias
fontes históricas (1).
Em
seguida, devemos considerar que a comunidade historiográfica – aqui
compreendida como o grande conjunto formado pelos historiadores de todas as
épocas e por toda a sua rede de pesquisas e obras – vai consolidando ao longo
da própria história da historiografia um vocabulário conceitual muito próprio e
específico da História. Esse vasto repertório conceitual também é formado a
partir de extratos de origens diversas; mas uma vez que alguns conceitos se
consolidam no repertório historiográfico devido ao seu uso bem-sucedido,
tendemos a nos esquecer das diferentes origens dos conceitos que o constituem e
passamos a utilizá-los como um repertório autorizado pela própria comunidade
historiadora. Muitos destes conceitos não possuem autoria discernível, embora
em muitos casos possam ser historiados se houver um interesse de pesquisa neste
sentido. “Antigo Regime”, por exemplo, foi um conceito criado nos meios
literários, jurídicos e políticos do século iluminista para se referir ao
modelo social, econômico e político da Europa no período anterior à Revolução
Francesa. Posto isto, os historiadores das gerações seguintes passaram a
utilizar o conceito em suas análises e este uso segue até hoje, obviamente com
direito a críticas de alguns setores internos à própria comunidade historiadora.
O
mesmo pode ser dito do conceito de “populismo”, noção de autoria desconhecida
cujo uso se generalizou para variadas realidades políticas, até adquirir um
sentido especial em alguns dos estudos sobre os governos latino-americanos que
se estabelecem a partir dos anos 1930. O uso do conceito para o regime de
Getúlio Vargas, no Brasil, estendendo-se em algumas análises até períodos
subsequentes, tem suscitado polêmicas na historiografia sobre História do
Brasil, com partidários a favor ou contra sua operacionalização para o estudo
destes diversos períodos. Em outras palavras, está em discussão o próprio uso
do conceito de “populismo” (da expressão em si), a sua compreensão (as notas que o definem), e os limites do seu potencial
generalizador (as possibilidades de uso em uma extensão mais ampla, para o caso
de períodos diversos da História da América, sem contar o universo mais vasto
de possíveis usos do conceito para realidades históricas que vão da Rússia de
fins do século XIX às modernas repúblicas latino-americanas).
A
discussão sobre um conceito, seja qual for a origem de seus materiais, é sempre
histórica, e deve se atualizar permanentemente. Nos anos 1960, começam a
aflorar na historiografia brasileira os estudos históricos mais consistentes
sobre o populismo e, sobretudo, as obras teóricas de reflexão sobre esta
formulação conceitual (Weffort 1978). As disputas em torno do
conceito, e também em favor do seu abandono, têm se mostrado particularmente
acirradas, e por vezes evolvem confrontos entre instituições e centros de
pesquisa. De todo modo, o conceito já faz certamente parte de um repertório historiográfico
possível, nos dias de hoje. Uma rica discussão sobre as definições possíveis de
“populismo” perpassa uma historiografia que tem no Brasil apenas um dos seus
muitos lugares de produção.
Populismo, Antigo Regime, bem como inúmeros outros conceitos, fazem parte de um
extrato conceitual que se disponibiliza como um patrimônio produzido no seio da
comunidade historiadora (2).
Vamos
seguir adiante em nosso quadro sobre as instâncias e ambientes que fornecem
conceitos à História. Há conceitos que surgiram como criações pessoais de um
historiador, diante do desafio de analisar certo problema histórico. São
aqueles conceitos que, nos seus primórdios, tiveram uma assinatura, e que em
muitos casos ainda a carregam como uma referência quase obrigatória. A adequação
de uma proposta conceitual, em muitos destes casos, permite que o conceito se
expanda em suas possibilidades de uso e se popularize ou se generalize mais na
comunidade historiadora, tornando-se parte efetiva do seu repertório. Podemos
exemplificar com o conceito de “coronelismo”, desenvolvido pelo
jurista-historiador Vitor Nunes Leal (1948). O conceito refere-se ao sistema
social e político específico que surge no Brasil da Primeira República
(1889-1930), com a implantação do federalismo republicano em substituição ao
antigo centralismo imperial. O Coronelismo é este sistema no qual o poder se vê
partilhado verticalmente da figura do “coronel” (um fazendeiro com grande poder
local) até outras instâncias como a dos Governadores, de lá culminando em um
Presidente da República cujo poder, na verdade, termina por se resignar a uma
política determinada principalmente ao nível dos governos dos estados. O
significativo poder conferido pelos governadores aos “coronéis” – que passam a
deter poderes de vida e de morte sobre a comunidade em que atuam – e a
articulação da rede de “coronéis” em torno de cada Governador, a verdadeira
fonte do poder a eles delegado, dá a tônica desse novo sistema, que vive
particularmente da dinâmica de barganhas estabelecida entre os governadores e
os coronéis.
Muito
se estudou e se escreveu sobre o mundo político concernente ao Brasil da
Primeira República – sendo a própria designação deste período objeto de intensa
discussão conceitual (“República Velha”, “Primeira República”, “Brasil
República”?). A começar pela própria oscilação de designações concernentes a
este período histórico, um variado vocabulário historiográfico tem sido
empregado nas análises desenvolvidas pelos pesquisadores. O conceito de
“coronelismo”, entrementes, é um destes que foram muito bem-sucedidos, e graças
a isto obteve longa vida na história da historiografia. No Brasil, a comunidade
historiadora o assumiu – ao lado de outras noções como a de mandonismo e de
clientelismo – no interior do repertório conceitual mais utilizado para a
discussão dos problemas sociais típicos da Primeira República. Há uma viva
discussão sobre a mais adequada compreensão
do conceito (o que ele significa, as notas que o caracterizam), bem como sobre
a sua extensão aceitável (os casos
que a ele podem se referir), e também sobre as relações deste conceito com
outros como o de mandonismo e o de clientelismo.
Há de fato uma viva polêmica em torno do conceito, e há muitos historiadores
que preferem rejeitá-lo criticamente, ao lado de outros que o instrumentalizam.
Mas ninguém discorda que, optando-se ou não o seu uso, a expressão tornou-se
parte de um vocabulário que pode ser mobilizado pelos historiadores do tema.
Trata-se de um bom exemplo de como um conceito criado pessoalmente – um conceito
batizado e de nascimento datado em uma obra específica – passou daí a um
repertório conceitual mais amplo [3].
Não
é nada raro que a História extraia seus materiais conceituais das demais
ciências humanas. A Antropologia, a Sociologia, a Ciência Política, a
Geografia, a Lingüística, a Psicologia, e outras áreas de estudo em formação
como a da Memória social, têm fornecido aos historiadores um rico manancial de
conceitos. Por fim, existe mesmo a possibilidade de conceituais oriundos de
campos de saber fora do eixo das ciências humanas [5]. O aproveitamento de
materiais conceituais vindos de outros campos de saber, que não os campos mais
vizinhos das ciências humanas com os quais o diálogo é quase evidente, não é de
modo algum estranho à História, e tampouco às demais ciências sociais e
humanas. Pode ocorrer tanto a migração direta de um conceito já utilizado em
outros campos da saber, como a migração de um componente para formar um
conceito maior. Para este último caso, já mencionamos o caso do conceito de
“densidade demográfica”, que extrai a sua componente “densidade” do campo da
Física. Neste, a densidade corresponde a uma relação entre massa e volume, da
mesma forma que na sociologia, na geografia ou na história, a “densidade
demográfica” irá corresponder a uma relação entre a população e o espaço por
ela ocupado.
Pode-se
lembrar ainda a importação do conceito de “crise” para áreas diversas dos
estudos históricos e sociais. “Crise econômica”, “crise social” ou “crise
política” apresentam como componente inicial uma noção que já era, há muito,
utilizada na Medicina. “Crise reumática”, “crise hepática”, “crise vascular”,
ou qualquer outra, constituíam desde há muito vocábulos correntes na Medicina,
utilizados para indicar a disfunção de um sistema, de um órgão, de um
organismo. O uso do conceito, migrado da Medicina e readaptado a novos usos, é
mais recente na História e na Economia, embora nos dias hoje o vocabulário da
“crise” esteja tão difundido como referência aos problemas sociais que tendemos
a nos esquecer que este uso tem uma história, e que o conceito de “crise” em
certo momento era restrito ao estudo dos organismos vivos (voltaremos a isto
mais adiante). Muitos exemplos podem ser dados, como o do conceito de
“segregação”, derivado de áreas como a genética e botânica, o qual encontrou
acolhida em estudos sobre a sociedade, gerando novos conceitos compostos, como
o de “segregação urbana”. Este, como outros conceitos, também entraram para a
linguagem comum, cotidiana, para a língua viva utilizada por todos.
Este
aspecto, aliás, permite que possamos dar uma volta completa em nosso quadro [6].
Os cientistas estão sempre mergulhados na vida (ou deveriam estar). Tanto
ajudam a criar a língua viva com que todos nos comunicamos, como extraem da
língua viva já existente materiais para as suas formulações conceituais. Com os
historiadores, não é diferente. Se alguns conceitos podem ou puderam ser
extraídos das próprias fontes (ou da língua viva do passado), também a própria
língua viva de hoje pode servir de inspiração para a criação de conceitos a
serem utilizados pelos historiadores atuais. O mundo das fontes – constituído
de vestígios, discursos e fragmentos de discursos – chega-nos, aliás, de uma
realidade que um dia já foi a própria vida viva, pulsante, diversificada e
cotidiana. No futuro, da mesma forma, este universo que constitui a realidade
de hoje terá passado ao campo da experiência – ao passado histórico – e
continuará a inspirar os historiadores a usarem certas expressões como
conceitos úteis para as análises historiográficas. O ponto sexto retorna ao
primeiro. Esse é o trabalho dos historiadores – estes cientistas cujo discurso,
ele mesmo, passará um dia ao mundo das fontes, ensejando um círculo perfeito.
José D'Assunção Barros
O texto exposto neste post é a primeira parte do artigo Os Conceitos na História: considerações sobre o anacronismo, publicado na revista Ler História, n°71, 2017.
O artigo corresponde a um dos capítulos de uma obra mais ampla: o livro Os Conceitos: seus usos nas ciências humanas, publicado pela Editora Vozes (BARROS, José D'Assunção. Os Conceitos na História. Petrópolis: Editora Vozes, 2015).

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